quarta-feira, 5 de setembro de 2018

Inferno na Quinta, Purgatório no Brasil


O avassalador incêndio no acervo do Museu Nacional e no Palácio São Cristóvão, na Quinta da Boa Vista, não pode ser encarado como mais uma triste coincidência brasileira. Ele é, na verdade, o produto direto da opção pela política de terra arrasada adotada como conseqüência do inconformismo daqueles que dominam os principais setores da sociedade brasileira em relação ao resultado das eleições presidenciais de 2014, o que levou o país à pior crise econômica de sua história, com severas conseqüências para as finanças públicas de todos os entes da federação. 
O incêndio da Quinta, se não foi proposital, certamente aproveitou a muitos interesses, internos e externos, pois se faz possível notar que o Brasil tem se encontrado diante de tão tenebroso estado de coisas, justamente, em função do desmonte de seu processo civilizatório, que não é de hoje. E a redução da Quinta da Boa Vista às cinzas é mais uma de muitas situações que se amoldam aos contornos de um país que vem sofrendo a decapitação sistemática de suas próprias bases civilizatórias. 
Nenhum outro país do continente Americano possui um palácio que tenha abrigado uma Casa Real européia e, posteriormente, a única Casa Real americana, originada do casamento entre o príncipe português, Dom Pedro I, e a princesa austríaca, Dona Leopoldina. Pois é, ensinaram a você errado na escola. O verde e o amarelo de nossa bandeira nacional não representam as cores de nossas matas nem o ouro e as riquezas do subsolo brasileiro. Na realidade, o verde da bandeira brasileira tem origem no verde-oliva do brasão da Casa Real dos Orleans e Bragança, de Portugal, ao passo que o amarelo-ouro de nossa flâmula tem sua origem no brasão da Casa Real dos Habsburgos, da Áustria, a realeza mais influente da Europa, naqueles idos. É dessa extraordinária comunhão entre as duas casas reais europeias no Rio de Janeiro que descende a Casa Real brasileira na figura proeminente do imperador Dom Pedro II, o maior e mais bem preparado estadista brasileiro de todos os tempos. Claro que não se trata aqui da defesa da restauração da monarquia brasileira. Contudo, não se pode deixar de reconhecer que a centralização do poder real no Rio de Janeiro, a partir de 1808, representada pela transferência astuta de Dom João VI e pela instalação de sua corte na então capital brasileira, operou-se, por exemplo, como instrumento imprescindível para que o Brasil lograsse a sólida unidade nacional de seu vasto território, coisa que a América espanhola não foi capaz de alcançar, pois se fragmentou em diversos outros países, e que os Estados Unidos só alcançaram êxito mediante a sangrenta e traumática Guerra de Secessão e a tomada de territórios mexicanos. Foi a centralização do poder real no Rio de Janeiro que possibilitou à América portuguesa, constituída por várias províncias, a se fundir no imenso país que o Brasil é hoje. 
Vale dizer que, caso Dom João VI não tivesse tomado a corajosa e fundamental decisão de escapar do expansionismo napoleônico, transferindo a corte de Lisboa para o Rio de Janeiro, muito provavelmente a América portuguesa também teria dividido-se em tantos países, quanto foram os movimentos separatistas que ocorreram e que foram todos abafados pelo rei e pelos dois imperadores que o sucederam.
Certo é que, há algum tempo, o Brasil perdeu o fio da meada de seu processo civilizatório tão, eficientemente, bem implantado por Portugal, a partir das décadas que se seguiram ao Descobrimento. Muito longe daquele estereótipo do colonizador bizarro que nos apresentaram nos bancos escolares, é preciso reconhecer que a colonização do Brasil foi uma das maiores e mais bem sucedidas aventuras da história da humanidade. Santo o português não nunca foi. Ninguém é santo! Mas a todo o momento, durante o Brasil-Colônia, o que se viu foi o português sempre disposto a lutar pelo Brasil, sempre buscando dar viabilidade econômica para o Brasil e sempre empenhado em transmitir a sua cultura para o Brasil.
Portugal é fiel depositário do legado civilizatório romano, estabelecido na antiguidade, e caracterizador da cultura ocidental. O brasileiro precisa reconhecer Portugal como seu berço romano e, portanto, precisa compreender o Brasil como a Roma Ultramarina. O português é um povo extremamente romano. Isso pode ser visto em sua arquitetura, na culinária, no idioma - que não por acaso é derivado do latim - na filosofia, nos costumes, nas artes e no aspecto, talvez, mais romano apresentado pelo português que é a sua imensa capacidade de assimilar de outros povos e culturas tudo aquilo que lhe seja funcional ou útil, característica esta da qual o Brasil é o resultado direto. O Império Romano também se fez assim, assimilando as culturas que conquistava. Pasme-se, o arco de alvenaria de pedra, que é símbolo romano, tão utilizado nas construções e na arquitetura romanas, foi assimilado por Roma, sendo originário da Pérsia. E aqui no Brasil, o português fez o mesmo, assimilou tudo o que viu de funcional na cultura dos índios, dos negros africanos e dos outros povos que para cá vieram, até mesmo geneticamente, fazendo sempre prevalecer o processo civilizatório romano de construção do país, que tem sido tão rejeitado pelos dominantes do Brasil já há algum tempo. A tragédia da Quinta da Boa Vista é apenas mais um triste episódio que ilustra a tremenda rejeição que o Brasil contemporâneo tem apresentado em relação ao seu processo civilizatório original, pois é isso que o Brasil vive desde 1964 e cada dia com mais intensidade. Tudo que tem relação com o processo civilizatório brasileiro é, atualmente, omitido, atacado, flexibilizado, transgredido, alienado, subvertido e até incendiado. 
O Brasil perdeu duas vezes. A primeira foi quando as chamas consumiram aquele preciso e insubstituível acervo, além do interior do prédio histórico da sede da Quinta da Boa Vista. A segunda foi quando, uma vez formado aquele imenso, avermelhado e perturbador braseiro no interior do palácio, o mesmo não foi aproveitado para submeter ao purgatório, fazendo com que também ardessem em chamas até as cinzas, todos aqueles que de alguma forma conduziram o Brasil à beira do precipício em que se encontra.