quarta-feira, 8 de abril de 2020

Os Civilizados Índios Antropófagos de João Monlevade:192 Anos da Expedição Monlevade


Transcorria o mês de fevereiro de 1828. Punha-se o sol diante do Atlântico. Estávamos no Quartel de Regência Augusta, na barra do Rio Doce, Província do Espírito Santo. Era o fim de um longo e pesado dia de trabalho. Desde muito cedo, os índios faziam a baldeação das 500 arrobas (7.500 quilos) do maquinário importado da Inglaterra e recém chegado do Rio de Janeiro numa embarcação à vela, de dois mastros, para bordo de 12 imensas canoas militares (foto), as quais deveriam conduzir rio acima, fazendo uso de varames, remos, cordames e estivas, a fim de vencer numerosas cachoeiras, corredeiras e tantos outros obstáculos, numa empreitada braçal até então jamais tentada, cuja tarefa central cingia-se em transportar para o interior de Minas Gerais as pesadas máquinas para a Fábrica de Ferro do minerálogo e engenheiro francês João Antônio de Monlevade.


Mas, depois de experimentar todo o peso nos braços e sem saber do que se tratava aquela carga, logo após acomodá-la nas canoas para a viagem, o índio, simplesmente, não compreendia porque deveria transportar para o sertão aqueles objetos pesadíssimos de ferro fundido, cilíndricos, de formas estranhas, que só podiam ser erguidos com auxílio de pequenas gruas e a força de muitos homens. Para os olhos do índio, os martelos de forja ingleses não eram mais do que grandes carrancas, cujo apenas um dos malhos pesava 80 arrobas (1.200 quilos). Inconformados, os índios então jogaram os remos no chão e cruzaram os braços. Diante do ato coletivo de rebeldia, o comandante da expedição, Lourenço Aquiles Lé Noir, deu ordem de descanso e mandou servir o jantar, já era início da noite. Uma fogueira foi acesa no largo de areia da praia e os índios formaram uma grande roda em torno dela. Mal terminara a refeição, Lé Noir arrastou para o centro da roda um baú que retirara de uma das canoas de suprimentos e determinou que seu conteúdo fosse virado ao chão: eram machados, facões, foices, enxadas, alavancas, martelos, etc, tudo feito de ferro. Os índios se entreolharam e, sem cerimônia, disputaram as ferramentas que também lhes facilitavam muito a vida. Le Noir, então, se colocou a explicá-los que toda aquela carga que lhes parecia tão estranha e era tão pesada se tratava, justamente, de máquinas necessárias à fabricação de machados, martelos, facões, enxadas e de peças muito maiores de ferro, algumas maiores de que um boi. Então, o índio quis ficar com o equipamento e pediu para que se iniciasse a fabricação dos machados logo ali. E todos, em coro, gritaram “auê”! O pajé deles pediu para ver a fabricação de um boi de ferro, advertindo que era ali que as máquinas deveriam ficar, pois o deslocamento de tão pesada carga pela via fluvial poderia perturbar os espíritos do rio e despertar a ira de Tupã . O comandante Le Noir, que se divertia com a situação, seguiu a explicá-los que para se fabricar um boi ou um machado de ferro eram necessários não apenas aquelas máquinas, mas também o minério de ferro que se tira do solo e de um tipo muito especial de pajé capaz de controlar o fogo para fazer o trabalho de forja das desejadas ferramentas e, a cada vez, que pronunciava a palavra “fogo”, arremessava um punhado de pólvora na fogueira, para deleite dos índios. E disse que a 70 léguas (500 quilômetros) rio acima, em meio a grandes montanhas de puro ferro, esperava por aquele maquinário um homem diferente, o tal tipo de pajé, que era o único naquele país capaz de controlar o fogo e de fazer funcionar aquelas máquinas para fabricar um boi de ferro, se fosse preciso. O nome dele era Monlevade. Então, as instruções eram para que, no dia seguinte, todos os índios se juntassem à expedição que partiria ao alvorecer e deveria vencer todos os obstáculos previstos e imagináveis rio acima, a fim de entregar aquela preciosa carga para Monlevade, nas terras altas da Província de Minas Gerais, muito distante dali. O comandante encerrou a assembléia e recolheu-se ao quartel. Então, aí sim, houve muita cerimônia! Os índios tomaram pelas mãos as ferramentas de ferro e, cerimoniosamente, cantaram e dançaram com elas até tarde da noite. Improvisaram um boi de palha em que os dançarinos se metiam dentro e, revezando, eram reverenciados por todo o grupo. O pajé oferecia o machado aos céus e pedia à Lua cheia que lhes enviasse mais machados.
Os índios botocudos, também conhecidos como bugres, habitavam toda a bacia do Rio Doce e foram os primeiros a navegarem por aqueles rios. Extremamente, bravo e guerreiro, o botocudo também era antropófago. Mas, não se alimentava de carne humana, cotidianamente. O botocudo não devorava qualquer um, comia apenas o inimigo que demonstrasse ser o mais bravo e corajoso na batalha. Assim, o botocudo acreditava que incorporava a coragem de seus oponentes. O local escolhido para a instalação da Fábrica de Ferro de Monlevade era em São Miguel, às margens do Rio Piracicaba, afluente do Rio Doce, no extremo oeste da abrangência nativa dos botocudos. A ideia de contar com uma fábrica de ferro que também produzisse machados, facões e tantas outras ferramentas úteis dentro de seu território pareceu muito auspiciosa para o índio. Já de madrugada, a aldeia estava inteira na praia para auxiliar na partida de cerca de uma centena índios, que então se tornavam intrépidos expedicionários, decididos a transpor cachoeiras, corredeiras e tudo mais que fosse necessário a fim de entregar a salvo aquela carga extraordinária para o tal pajé chamado Monlevade, que os aguardava, ansiosamente, rio acima. Reuniram muitos remos, arcos, flechas e tomaram seus lugares. Muitos se pintaram para a guerra, como se conhecessem os perigos que enfrentariam. O boi de palha foi devidamente acomodado e amarrado na proa da primeira canoa da frota e submetido à devida pajelança, como se estivesse ali para enfrentar qualquer mal que pudesse ocorrer aos expedicionários. Sobre ele os índios colocaram uma grande peça de couraça de tamanduá, resistente à flechadas e a investidas das garras da onça, muito típica da indumentária de guerra do botocudo (imagem). O Vigário de Cuieté, que se tornaria grande amigo de Monlevade, encontrava-se no Espírito Santo, necessitando de transporte para o interior de Minas e se juntou à Expedição. Antes da partida, benzeu a frota de 12 canoas, toda carga e cada um dos expedicionários. Reservadamente, aconselhou aos homens para que não praticassem grandes atos de bravura diante dos índios, a fim de não lhes despertar o instinto antropofágico.


Assim, devidamente abastecida de mantimentos, dos equipamentos necessários, de muitos remos, arcos, lanças, flechas e das 500 arrobas da preciosa carga, naquela manhã, zarpou de Regência no Espírito Santo, sob o comando de Lourenço Aquiles Le Noir, a histórica expedição tripulada pelas divisões militares de outro ilustre francês, Guido Thomáz Marliéri, e por cerca de uma centena de bravíssimos índios botocudos, que transportariam, através de arriscadíssima e inédita navegação pelos rios Doce e Piracicaba, até o interior de Minas Gerais, o maquinário indispensável para a fundação da mais importante fábrica de ferro a operar no Brasil Imperial. Tudo, com muita fé, cerimônia indígena e determinação. Nem pareciam aqueles temidos antropófagos que eram.
Muito mais tarde, depois de se tornar o maior fornecedor de artefatos de ferro das companhias mineradoras de ouro, João Antônio de Monlevade escreveria sobre o poder civilizatório do ferro:
“O futuro grandioso desta terra ... não está no ouro, nos diamantes, mas sim no ferro este grande agente da civilização ... sem o qual os países, os mais civilizados, em poucos anos estariam reduzidos ao estado selvagem”.

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