terça-feira, 20 de agosto de 2019

Da Fundamental Produção de Carvão à Gastronomia possível nos Caldeirões da Senzala Monlevade




Atividade fundamental para o funcionamento da Fábrica de Ferro de João Monlevade foi a produção do carvão em escala fabril. Antes de se fixar em S. Miguel do Piracicaba, o próprio Monlevade já havia estabelecido fornos para a redução do ferro em Sabará e Caeté, onde encontrara imensa dificuldade de produção devido a inexistência de matas abundantes para o fabrico do carvão de forma ininterrupta. Aqui, onde hoje é o município homônimo, João Monlevade encontrou não apenas acesso ao Rio Piracicaba, por meio do qual transportaria as pesadas máquinas importadas da Inglaterra para sua indústria, como também o minério de ferro com fartura e qualidade extraordinária, além de uma luxuriante e extensa faixa de Mata Atlântica, que seria determinante para o processo de produção de seu fabuloso estabelecimento, fornecendo-lhe, sobretudo, a madeira para o fabrico do indispensável carvão. 
Sem dúvida, a produção em escala do carvão foi atividade chave para a Fábrica de Ferro Monlevade e, portanto, exigia imenso esforço de trabalho do empreendimento, ocupando porção significativa de sua mão-de-obra. Dos 150 escravos de Monlevade, grande parte se dedicava à derrubada da madeira, corte e transporte da lenha, enfornamento e transporte do carvão. 
No Relatório de 1853, Monlevade registra que mantinha "duas pontes lançadas sobre o Rio Piracicaba as quais por longos anos facilitarão o ingresso do carvão, etc, etc, de ambos os lados do mesmo”. Trata-se de preciosa informação, da qual se infere que eram, pelo menos, duas as suas carvoarias de Monlevade, cada uma de um lado do rio. Acredito que uma delas se localizava nas imediações de onde é hoje o Clube de Caça e Pesca e a outra no Bairro Vila Tanque. É muito provável que as vias que hoje representam o traçado da Avenida Aeroporto, da Rua Dr. Geraldo Soares de Sá e do acesso ao Campo de Aviação foram, originalmente, abertas no meio da mata por Monlevade para condução da lenha e do carvão até os fornos de sua fábrica. Como eram transportados por imensos carros de bois de quatro rodas, faz muito sentido que os mesmos subissem para a mata vazios e, depois de carregados com a lenha para o enfornamento ou com o carvão já pronto, desciam o morro, favorecidos pela gravidade, até a Fábrica de Ferro, que se localizava onde hoje é a Rua dos Contratados, logo abaixo do Solar Monlevade. 
No mesmo relatório Monlevade não registra o quanto de carvão sua fábrica produzia, diariamente. Contudo, revela que, por dia, ela rendia "30 arrobas de ferro”, ou seja, 450 quilos diários do metal. A partir de tal informação e da relação existente de 6 toneladas de carvão para uma tonelada de ferro produzido pelo método catalão, pode-se estimar que a Fazenda Carvoeira de Monlevade não podia produzir menos do que 3 toneladas de carvão por dia.É preciso considerar ainda que o fabrico do carvão se tratava de serviço sazonal, já que no período das chuvas, por motivos óbvios, se tornavam muito mais difíceis os trabalhos de corte da madeira, de enfornamento e de transporte da mesma. É possível ainda que Monevade produzisse mais de 3 toneladas de carvão, diariamente, estocando parte deste essencial insumo para ser consumido durante o período chuvoso, quando o serviço era quase interrompido devido as más condições das estradas e ao encharcamento da lenha. 
Aspecto também muito interessante sobre a produção de carvão vegetal em Monlevade é que tal atividade colocava a mão-de-obra do estabelecimento em contato direto com a Mata Atlântica local. Muitos escravos monlevadenses passavam o dia inteiro dentro da mata, derrubando, picando e transportando a madeira para as carvoarias. E neste contato direto com a mata, é esperado que dela os escravos não retiravam apenas a madeira para o carvão ou para as demais necessidades do estabelecimento. Considerando que, muito além da madeira, a mata é riquíssima em alimentos, é bastante possível que dela os escravos de Monlevade também aproveitavam muitos itens para incrementar a comida que lhes era preparada na cozinha. 
Infelizmente, o arquivo de registros, de relatórios, de correspondências, de periódicos e a biblioteca mantida por João Antônio de Monlevade foram extraviados para o Rio de Janeiro, quando a propriedade da família foi vendida para a Companhia Nacional de Forjas e Estaleiros em 1891, encontrando-se, ainda hoje, em local desconhecido. Assim, faltam subsídios específicos, capazes de revelar com precisão o que era preparado pela cozinha da Senzala Monlevade. Contudo, ainda no Relatório de 1853, João Antônio de Monlevade descreve uma série de características de seu estabelecimento que, conjugadas com o conhecimento sobre os víveres disponíveis na mata, nos permitem um pequeno vislumbre de alguns pratos, possivelmente, servidos na cozinha da Senzala Monlevade, durante os mais de 50 anos de funcionamento da maior e mais importante Fábrica de Ferro do Brasil Império . Ele registrou:
“ ... a superfície do terreno é geralmente coberta de matos e pouca produtiva de milho e feijão, mas sendo geralmente arenosa em muitas localidades frescas, produz muita batata doce, mandioca, etc... Em roda destes edifícios, o terreno está sempre ocupado de plantações úteis... Esta aguada é muito importante dando, mesmo no terreiro, impulso a um engenho de pilões, moinho para o fubá à moda européia , ralador de mandioca, etc.”
Dos trechos destacados acima e extraídos do Relatório de 1853, pode concluir-se que a base da alimentação na cozinha Monlevade eram o feijão, o milho e a mandioca, todos alimentos de origem indígena. Naquela época, o arroz e a farinha de trigo eram muito menos difundidos do que hoje. Ao citar moinho de milho e ralador de mandioca, Monlevade indica que o milho e a mandioca eram consumidos também em forma de farinhas e da canjiquinha. Quando Monlevade assinala que “o terreno está sempre ocupado de plantações úteis”, pode-se compreender que em torno do Solar havia um grande pomar e uma imensa horta, repleta de variedades de pimentas, condimentos, o urucum, etc. Monlevade também criava muito gado bovino, que era empregado na em juntas na tração dos imensos carros de bois de quatro rodas, donde se pode deduzir também que, esporadicamente, algum corte bovino deveria integrar o cardápio do almoço de seus trabalhadores. Monlevade não cita o porco. Mas, partindo do princípio da auto-suficiência com que era conduzido seu empreendimento, buscando sempre produzir todo o necessário para tudo, pode-se crer que existissem também os chiqueiros para a engorda de porcos, já que a carne suína já era muito difundida em Minas, naquela época. Muito difícil pensar em comida no sec. XIX, sem o porco, cuja banha era utilizada como meio geral de fritura e conservação da carne. E todos estes ingredientes, somados ou não aos produtos da exuberante Mata Atlântica local, resultam numa variedade pratos que podem ser muito interessantes sob o ponto de vista gastronômico, como veremos a seguir. 
O primeiro deles é uma exceção, é o feijão tropeiro. A Fábrica de Ferro de Monlevade era considerada a Meca dos Tropeiros, atraindo muitas tropas das diversas regiões da província, já que produzia cravos, ferraduras e prestava serviço completo de ferragem de animais. Lá era possível ferrar uma tropa inteira em muito pouco tempo, por preço cômodo. Havia também muitos tropeiros que viviam, exclusivamente, de revender os mais variados artefatos de ferro fabricados por Monlevade, Minas Gerais afora. As estradas abertas por Monlevade na região e as duas pontes mantidas por ele sobre o Rio Piracicaba também atraiam muitas outras tropas que delas se serviam. Além do mais, dentre seus escravos, Monlevade contava com ótimos carreiros, que conduziam os carros de bois de quatro rodas para os diversos fins e até longas distâncias, além de ótimos arrieiros, responsáveis pelo transporte das tropas próprias do estabelecimento. De modo que, por influência do intenso tropeirismo incidente sobre a Fábrica de Ferro, o feijão tropeiro era, sem dúvida, um dos principais pratos preparados na cozinha da Senzala Monlevade que não se pode deixar de citar nesta oportunidade, apesar de não relacionado com os produtos da mata, já que é composto basicamente de feijão, farinha de mandioca e toucinho de porco conservado na banha, produtos estes menos perecíveis e, portanto, capazes de perdurar às longas viagens que os tropeiros faziam. E ainda sobre o feijão é de se deduzir que o mesmo também era cozido com trupicos de porco, em grandes caldeirões de ferro fabricados pelo próprio Monlevade, numa espécie de embrião da feijoada, que não podia deixar de ser servida com farinha de mandioca e pimenta malagueta. O feijão cozido, servido com o angu também deveria ser um prato muito comum, assim como a Vaca Atolada, que é a mandioca cozida com carne bovina. 
Mas, de volta à Mata Atlântica local, sabe-se que ela é muito rica em gêneros alimentícios como frutas, palmitos, tubérculos, folhas e a caça que era muito difundida, antigamente, como fonte de alimento. Sabe-se que foram os primeiros habitantes destas matas - os índios botocudos - quem trouxeram por meio de inédita navegação pelo rio as sete toneladas e meia de maquinário para equipar a primeira Fábrica de Ferro Monlevade, a partir de 1828. Caso os escravos de Monlevade tivessem mantido alguma troca de conhecimento com os botocudos sobre o aproveitamento dos alimentos da floresta, então, as possibilidades de pratos derivados de itens da mata são infinitas. 
A Mata Atlântica local é abundante de uma ave chamada jacu, muito parecida com o frango, de palmito Jussara e do ora-pro-nobis, que também é nativo. O cruzamento do jacu com frango doméstico gera até um híbrido. Daí, no âmbito da cozinha da Senzala Monlevade,pode-se pensar num prato semelhante ao frango cozido, com ora-pro-nobis, salsa e cebolinha servido com farinha de mandioca e pimenta malagueta. Ou, então, frango cozido, com palmito Jussara, servido com angu e pimenta malagueta.
Quem conhece a Mata local, sabe que ela também é muito rica em chuchu e bananeira, que não são nativos. A difusão do chuchu, das bananeiras e de outras espécies nas matas do Hospital Margarida e do Clube Embaúba merece estudo e pode significar que a Mata Atlântica local representava, de fato, uma fonte de alimentação complementar tão importante para os trabalhadores da Fábrica de Ferro Monlevade, a ponto de seus escravos terem, além da prática do extrativismo, também introduzido e disseminado espécies exógenas na mata, buscando sempre uma maneira de incrementar a alimentação que lhes era devida. Ora, se não são nativos, quem teria plantado chuchu e bananeiras na mata inteira (fotos)? 
Daí, se pode pensar também num prato de chuchu, refogado com urucum, cozido com carne de boi, salsa, cebolinha, servido com farinha de mandioca ou angu e pimenta malagueta.
Pode-se pensar também na canjiquinha cozida com toucinho defumado, servida com banana da terra frita na banha, salsa, cebolinha e pimenta malagueta. 
Além dos alimentos salgados também há outros dos quais se pode fazer doces. Da batada-doce, expressamente, citada por Monlevade, se pode fazer o correspondente doce, assim como das abóboras, que também são nativas. O palmito Jussara também produz um açaí, especialmente, frutado. Há ainda na mata muito abacate, do qual também se pode fazer doce e extrair o óleo. E ainda há o ingá, o morango silvestre e as ameixas, que não são nativas, apesar de muito difundidas na mata. 
Como já mencionado, trata-se de tema que merece estudo muito mais aprofundado e cuja passagem rápida já nos enche de água na boca e nos permite um pequeno e apetitoso vislumbre dos pratos originais que alimentaram os pioneiros da história local e embasam nossa culinária ancestral, lembrando ainda que por óbvia influencia da culinária mineira, tudo era preparado mediante alho, cebola e urucum refogados. 



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