sábado, 6 de junho de 2020

ENQUANTO ISSO, NA FÁBRICA DE FERRO MONLEVADE: ÊTA FERRO, SÔ!



Os diversos artefatos produzidos, a partir de 1828, pela Fábrica de Ferro do minerálogo e metalúrgico francês João Antônio de Monlevade viabilizaram, sob o ponto de vista tecnológico, uma interessante fase da mineração do ouro em Minas Gerais, representada pelo estabelecimento das Companhias Mineradoras Inglesas e, sobretudo, pela adoção de mecanização no processo minerário, cuja herança cultural segue muito viva no jeito peculiar de falar do mineiro.
Nos mil e oitocentos, a produção de ouro já havia declinado muito se comparada àquela verdadeira fábula ocorrida no início do sec. XVIII. O ouro mais fácil dos depósitos sedimentares superficiais e das galerias das encardideiras argilosas dava sinais de esgotamento. Contudo, ainda havia muito ouro nos veios subterrâneos. O problema era como processar aquele ouro, já que sua ocorrência se dava associada ao quartzito, uma rocha muito dura. Foi então que, a partir do segundo quartel do sec. XIX,  com capital inglês, fundaram-se muitas companhias mineradoras que adotaram, intensivamente, tecnologias mecanizadas no processamento do ouro, como a utilização do Engenho Mineiro de Pilões, etc. Constituído, por uma poderosa roda d’água e uma fileira de trituradores, cujas cabeças eram blocos sólidos de 80 quilos de ferro forjado, o Engenho Mineiro de Pilões(fotos) funcionava dia e noite, sendo muito eficiente no processamento do quartzito aurífero. Entre 1826 e 1856, apenas o Gongo Soco, que então pertencia à Imperial Brazilian  Mining Association, apurou, mediante o emprego do Engenho Mineiro de Pilões, a fabulosa soma de 27.887 quilos de ouro puro, o que fez dela a maior mina produtora de ouro da história da humanidade.
E coube a João Monlevade suprir por mais de 50 anos a demanda por artefatos de ferro imposta pela mecanização das minas, produzindo tudo de ferro que as Companhias Inglesas necessitavam e, principalmente, a ferragem completa e as cabeças dos trituradores dos Engenhos Mineiros de Pilões, além de peças e ferramentas de todas as formas e tamanhos, algumas de mais de 900 quilos de peso.
E foi convivendo com os ingleses das companhias mineradoras, que o mineiro passou a utilizar expressões lingüísticas muito típicas como “sô”,  “trem” e “uai”.
Falava-se o inglês nas companhias mineradoras. Tidos como lordes, os ingleses se tratavam por “sir”, cuja tradução para o português é senhor e, no sotaque mineiro, logo se tornou “sô”, que, não por menos, também é muito empregado como sinônimo de senhor. Por “sô” também é tratado aquele com quem se conversa. O mineiro se refere ao outro como “sô”, pois era assim que os ingleses se tratavam nas companhias mineradoras. “Trem” é em referência ao termo inglês “train”, que era como os ingleses denominavam o sistema de vagonetes sobre trilhos, utilizados nas Companhias Inglesas para retirar o minério aurífero das galerias subterrâneas. A tecnologia dos trens de vagonetes também foi introduzida no contexto de mecanização das minas e facilitou tanto o serviço que, deslumbrado com o rendimento daquele equipamento, o mineiro passou a chamar qualquer coisa de trem. Pode-se dizer que naquele contexto da mecanização da mineração, o trem de vagonetes era tudo para o mineiro. E ainda hoje, em Minas, “trem” significa qualquer coisa, negócio ou troço.  O “uai”, por sua vez,  tem origem no vocábulo inglês “why”, cuja tradução é “por que (?)”. Os ingleses eram ao mesmo tempo patrões e senhores, pois se empregava nas companhias tanto mão-de-obra escravizada como assalariada. E era, justamente, a assalariada a mão-de-obra mais difícil de lidar, de se obter resultado. Assim, os ingleses estavam sempre questionando e cobrando do mineiro o porquê de tudo. Daí, indagavam muito ao mineiro: “why, why”?  A ponto de o mineiro aportuguesar o “why” para “uai”, passando a utilizá-lo para expressar espanto, surpresa ou assombro.            
Ora, se a fase da mecanização da mineração do ouro deixou tantas marcas no jeito de falar do mineiro e se a Fábrica de Ferro de Monlevade esteve tão, intimamente, ligada àquele fenômeno, acredito que ela também pode ter deixado sua contribuição no modo mineiro de falar. Até porque se tratou da mais importante Fábrica de Ferro do Brasil-Império. Falo de outra expressão muito curiosa e também muito falada pelo mineiro da região que é “Êta ferro, sô!” .
A Fábrica de Ferro Monlevade comunicava muito com diversas regiões de Minas. João Monlevade abriu e manteve por décadas  uma vasta rede de estradas carroçáveis que ligava sua fábrica à maioria das companhias inglesas e à vários outros mercados mineradores, etc. Durante os meses de seca, o trânsito dos carretões de quatro rodas, puxados por muitas juntas de bois, se intensificada nos arredores da fábrica. Eles deixavam o estabelecimento para transportar peças de ferro a grandes distâncias e junto da carga também podiam levar notícias, recados, casos, um pouco do cotidiano da fábrica, etc. Durante todo o ano, muitas tropas de diversas regiões de Minas estavam sempre chegando ou deixando o estabelecimento. Umas para abastecer a Fábrica de víveres, outras porque revendiam artefatos de ferro da fábrica, Minas Gerais afora. Havia ainda aquelas que necessitavam apenas de atravessar o Rio Piracicaba numa das pontes mantidas por Monlevade, outras necessitavam do serviço completo de ferragem dos animais, prestado pelo estabelecimento, etc, etc. Havia também os Correios que visitavam a fábrica a cada cinco dias e as tropas próprias do estabelecimento. Enfim, existia muita comunicação.
Assim como “uai”, “trem” e “sô”, a expressão “êta ferro, sô!” é muito utilizada na região, sendo empregada quando se está diante de uma dificuldade. Quando o mineiro se depara com algo dificultoso, ele exclama “êta ferro, sô!”.  “Êta” é tupi-guarani e indica espanto ou surpresa. “Ferro” é o metal que conhecemos. E “sô”, como já visto, é alguém com quem se conversa.  A Fábrica de Ferro Monlevade era afamada pelo treinamento e habilidade de seus mestres-ferreiros que fabricavam peças de ferro de todas as formas e tamanhos, algumas muito meticulosas. Há registro de mestre-ferreiro de Monlevade que fabricou um relógio de parede e uma máquina de costura, tudo feito a mão na forja.
Acredito que quanto um dos mestres-ferreiros de Monlevade se punha a forjar um ferro mais meticuloso, daqueles de marteladas contadas, precisas, em que se empregava técnicas hoje esquecidas, então, ele  iniciava a seqüência e as manobras dos golpes de forja e, pela complexidade própria do serviço, batia o malho fora do lugar, inviabilizando a peça e, então, frustrado, exclamava: “êta ferro, sô!”:trabalho todo perdido! Então, um tropeiro que, curioso, observa aquele trabalho, enquanto carregava as bruacas de sua tropa com as últimas dúzias de ferraduras, cravos e ferramentas para ferrar, ouvia aquela expressão, retornava, por exemplo, para Diamantina e quando lá chegava, deparava-se como uma situação dificultosa e também exclamava: “êta ferro, sô!”. Um carreiro de Monlevade deixava a fábrica para levar até a Mina do Morro Velho determinada peça de ferro, então, no último pouso  a roda do carretão quebrava e ele, que já havia escutado aquilo mil vezes, também exclamava: “êta ferro, sô!” O dono do pouso ouvia aquilo e passava a diante.
Afinal, onde mais poderia ter sido cunhada em Minas Gerais a expressão regional “Êta ferro, sô!”, a não ser na Fábrica de Ferro que participou diretamente do processo de mineração, do qual “uai”, “trem” e “sô” se originaram? Só pode ter sido em Monlevade!           

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