Os diversos
artefatos produzidos, a partir de 1828, pela Fábrica de Ferro do minerálogo e
metalúrgico francês João Antônio de Monlevade viabilizaram, sob o ponto de
vista tecnológico, uma interessante fase da mineração do ouro em Minas Gerais,
representada pelo estabelecimento das Companhias Mineradoras Inglesas e,
sobretudo, pela adoção de mecanização no processo minerário, cuja herança
cultural segue muito viva no jeito peculiar de falar do mineiro.
Nos mil e
oitocentos, a produção de ouro já havia declinado muito se comparada àquela
verdadeira fábula ocorrida no início do sec. XVIII. O ouro mais fácil dos
depósitos sedimentares superficiais e das galerias das encardideiras argilosas
dava sinais de esgotamento. Contudo, ainda havia muito ouro nos veios
subterrâneos. O problema era como processar aquele ouro, já que sua ocorrência
se dava associada ao quartzito, uma rocha muito dura. Foi então que, a partir do
segundo quartel do sec. XIX, com capital
inglês, fundaram-se muitas companhias mineradoras que adotaram, intensivamente,
tecnologias mecanizadas no processamento do ouro, como a utilização do Engenho
Mineiro de Pilões, etc. Constituído, por uma poderosa roda d’água e uma fileira
de trituradores, cujas cabeças eram blocos sólidos de 80 quilos de ferro
forjado, o Engenho Mineiro de Pilões(fotos) funcionava dia e noite, sendo muito
eficiente no processamento do quartzito aurífero. Entre 1826 e 1856, apenas o
Gongo Soco, que então pertencia à Imperial Brazilian Mining Association, apurou, mediante o
emprego do Engenho Mineiro de Pilões, a fabulosa soma de 27.887 quilos de ouro
puro, o que fez dela a maior mina produtora de ouro da história da humanidade.
E coube a
João Monlevade suprir por mais de 50 anos a demanda por artefatos de ferro
imposta pela mecanização das minas, produzindo tudo de ferro que as Companhias
Inglesas necessitavam e, principalmente, a ferragem completa e as cabeças dos
trituradores dos Engenhos Mineiros de Pilões, além de peças e ferramentas de
todas as formas e tamanhos, algumas de mais de 900 quilos de peso.
E foi
convivendo com os ingleses das companhias mineradoras, que o mineiro passou a
utilizar expressões lingüísticas muito típicas como “sô”, “trem” e “uai”.
Falava-se o
inglês nas companhias mineradoras. Tidos como lordes, os ingleses se tratavam
por “sir”, cuja tradução para o português é senhor e, no sotaque mineiro, logo
se tornou “sô”, que, não por menos, também é muito empregado como sinônimo de
senhor. Por “sô” também é tratado aquele com quem se conversa. O mineiro se
refere ao outro como “sô”, pois era assim que os ingleses se tratavam nas
companhias mineradoras. “Trem” é em referência ao termo inglês “train”, que era
como os ingleses denominavam o sistema de vagonetes sobre trilhos, utilizados
nas Companhias Inglesas para retirar o minério aurífero das galerias
subterrâneas. A tecnologia dos trens de vagonetes também foi introduzida no
contexto de mecanização das minas e facilitou tanto o serviço que, deslumbrado
com o rendimento daquele equipamento, o mineiro passou a chamar qualquer coisa
de trem. Pode-se dizer que naquele contexto da mecanização da mineração, o trem
de vagonetes era tudo para o mineiro. E ainda hoje, em Minas, “trem” significa
qualquer coisa, negócio ou troço. O
“uai”, por sua vez, tem origem no
vocábulo inglês “why”, cuja tradução é “por que (?)”. Os ingleses eram ao mesmo
tempo patrões e senhores, pois se empregava nas companhias tanto mão-de-obra
escravizada como assalariada. E era, justamente, a assalariada a mão-de-obra
mais difícil de lidar, de se obter resultado. Assim, os ingleses estavam sempre
questionando e cobrando do mineiro o porquê de tudo. Daí, indagavam muito ao
mineiro: “why, why”? A ponto de o
mineiro aportuguesar o “why” para “uai”, passando a utilizá-lo para expressar
espanto, surpresa ou assombro.
Ora, se a
fase da mecanização da mineração do ouro deixou tantas marcas no jeito de falar
do mineiro e se a Fábrica de Ferro de Monlevade esteve tão, intimamente, ligada
àquele fenômeno, acredito que ela também pode ter deixado sua contribuição no
modo mineiro de falar. Até porque se tratou da mais importante Fábrica de Ferro
do Brasil-Império. Falo de outra expressão muito curiosa e também muito falada
pelo mineiro da região que é “Êta ferro, sô!” .
A Fábrica de
Ferro Monlevade comunicava muito com diversas regiões de Minas. João Monlevade
abriu e manteve por décadas uma vasta
rede de estradas carroçáveis que ligava sua fábrica à maioria das companhias inglesas
e à vários outros mercados mineradores, etc. Durante os meses de seca, o
trânsito dos carretões de quatro rodas, puxados por muitas juntas de bois, se
intensificada nos arredores da fábrica. Eles deixavam o estabelecimento para
transportar peças de ferro a grandes distâncias e junto da carga também podiam
levar notícias, recados, casos, um pouco do cotidiano da fábrica, etc. Durante
todo o ano, muitas tropas de diversas regiões de Minas estavam sempre chegando
ou deixando o estabelecimento. Umas para abastecer a Fábrica de víveres, outras
porque revendiam artefatos de ferro da fábrica, Minas Gerais afora. Havia ainda
aquelas que necessitavam apenas de atravessar o Rio Piracicaba numa das pontes
mantidas por Monlevade, outras necessitavam do serviço completo de ferragem dos
animais, prestado pelo estabelecimento, etc, etc. Havia também os Correios que
visitavam a fábrica a cada cinco dias e as tropas próprias do estabelecimento.
Enfim, existia muita comunicação.
Assim como
“uai”, “trem” e “sô”, a expressão “êta ferro, sô!” é muito utilizada na região,
sendo empregada quando se está diante de uma dificuldade. Quando o mineiro se
depara com algo dificultoso, ele exclama “êta ferro, sô!”. “Êta” é tupi-guarani e indica espanto ou
surpresa. “Ferro” é o metal que conhecemos. E “sô”, como já visto, é alguém com
quem se conversa. A Fábrica de Ferro
Monlevade era afamada pelo treinamento e habilidade de seus mestres-ferreiros
que fabricavam peças de ferro de todas as formas e tamanhos, algumas muito
meticulosas. Há registro de mestre-ferreiro de Monlevade que fabricou um
relógio de parede e uma máquina de costura, tudo feito a mão na forja.
Acredito que
quanto um dos mestres-ferreiros de Monlevade se punha a forjar um ferro mais
meticuloso, daqueles de marteladas contadas, precisas, em que se empregava
técnicas hoje esquecidas, então, ele iniciava a seqüência e as manobras dos golpes
de forja e, pela complexidade própria do serviço, batia o malho fora do lugar,
inviabilizando a peça e, então, frustrado, exclamava: “êta ferro, sô!”:trabalho
todo perdido! Então, um tropeiro que, curioso, observa aquele trabalho,
enquanto carregava as bruacas de sua tropa com as últimas dúzias de ferraduras,
cravos e ferramentas para ferrar, ouvia aquela expressão, retornava, por
exemplo, para Diamantina e quando lá chegava, deparava-se como uma situação
dificultosa e também exclamava: “êta ferro, sô!”. Um carreiro de Monlevade
deixava a fábrica para levar até a Mina do Morro Velho determinada peça de
ferro, então, no último pouso a roda do
carretão quebrava e ele, que já havia escutado aquilo mil vezes, também
exclamava: “êta ferro, sô!” O dono do pouso ouvia aquilo e passava a diante.
Afinal, onde
mais poderia ter sido cunhada em Minas Gerais a expressão regional “Êta ferro,
sô!”, a não ser na Fábrica de Ferro que participou diretamente do processo de
mineração, do qual “uai”, “trem” e “sô” se originaram? Só pode ter sido em
Monlevade!
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