quarta-feira, 28 de abril de 2021

Chico: o Rei Preto de Minas Gerais, o primeiro coroado no Brasil


Um país que ignora sua verdadeira história é como uma pessoa que sofre de amnésia. Se por algum motivo perdemos a memória individual, deixamos de ser quem somos, perdemos nossa identidade e tornamo-nos incapazes. Com o país e sua memória coletiva, isto é, a história nacional, não é diferente. No Brasil, há pouquíssima consciência histórica e a história lecionada nos bancos escolares é quase sempre enganosa e muito deturpada. Deturpação muito recorrente sobre a história brasileira é a de que “Portugal apenas enviou degredados para o Brasil”, o que, definitivamente, não é a verdade história. Em 1808, por exemplo, o intrépido Rei Dom João VI, evadindo-se do contexto desfavorável napoleônico, transferiu toda sua corte para o Rio de Janeiro, fato extraordinário sem paralelo no mundo e fundamental, sobretudo, para a unidade territorial brasileira. A partir daí, iniciou-se a única linhagem real das Américas, constituída por figuras importantíssimas para a história brasileira, como Dom Pedro I, Dona Leopoldina da Áustria e Dona Amélia de Leuchtenberg, Dom Pedro II e Dona Teresa Cristina das Duas Sicílias, a Princesa Isabel e até Dona Maria da Glória, a belíssima e desconhecida princesa brasileira, nascida no Palácio São Cristóvão no Rio de Janeiro, que assumiu o trono de Portugal.            

 Então, não é verdade que somos um país fundado por degredados, como nos ensinaram nos bancos escolares. Somo um país de reis e de rainhas, muito deles nascidos aqui. Mas, muito antes de Dom João vir para o Brasil ou de Maria da Glória assumir o trono de Portugal, foi, solenemente, coroado no Brasil um rei, que, apesar de negligenciado pela história adotada como a oficial, foi  tão ou até mais importante quanto os demais para a constituição da identidade brasileira, a ponto de seu reinado ter passado incólume pela proclamação da República, seguindo vigente ainda hoje, quase trezentos anos depois de sua aclamação. Seu nome é Chico Rei.      

Inicialmente, Chico Rei chamava-se Galanga. Ele era sumo-sacerdote do deus Zambi-Apungo e rei de uma sociedade semi-feudal no Reino do Congo, África, quando foi capturado junto de toda sua corte por traficantes de escravos e trazido para o Brasil, desembarcando no porto do Rio de Janeiro. Batizado de Chico, Galanga e muitos de seus súditos foram vendidos no Rio de Janeiro para o minerador Augusto de Andrade Góis e conduzidos para Vila Rica, onde foram empenhados nos trabalhos de mineração nas galerias subterrâneas da famosa Mina de Ouro da Encardideira, que leva este nome curioso em razão da composição um tanto viscosa, colorida de ocre, característica do mineral aurífero de seus veios, o que fazia com que os mineiros, depois de um dia inteiro de trabalho, deixassem seu subterrâneo com os corpos e as vestimentas encardidos dos pés à cabeça.

Costumamos imaginar que a sociedade colonial brasileira era, rigidamente, dividida em apenas duas classes, a dos senhores brancos e a dos escravos negros. Não era assim. O português é um povo, extremamente, românico, no sentido de herdeiro do legado civilizatório-cultural do antigo Império Romano. E em Roma era muito comum o costume da alforria, ou seja, o hábito de se oportunizar ao escravo a aquisição de sua liberdade. Nas Minas Gerais, as alforrias podiam se dar de várias formas, pelo batizado, pelo casamento, por disposição de última vontade ou até mesmo pela compra da carta de alforria pelo próprio escravo, sempre com intermediação da Igreja. Na mineração do ouro era muito comum o senhor permitir que o escravo embolsasse pequenos ganhos apurados nos domingos ou nos dias santos. Também eram comuns pequenos prêmios para o escravo que ultrapassasse uma cota de ouro estabelecida em determinada ocasião. Extravios de ouro também não eram poucos.

Assim, pouco tempo depois de ingressar na Encardideira, Chico já exercia sua liderança real entre os demais escravos, muitos deles seus antigos súditos, e conquistava a confiança de seu senhor e proprietário da mina, Augusto de Andrade, na medida em que os filões revelavam somas absurdas do metal precioso. Então, pelo preço de um quilo e meio de ouro que acumulou no trabalho extra, Chico comprou sua própria carta de alforria. Pouco tempo depois, comprou também a alforria do filho, Muzinga, e o libertou. Comprou outra, mais uma e não parou mais. Libertou todos os súditos que com ele haviam sido escravizados naquela Mina de Ouro. Logo, Chico era o único feitor a adentrar as galerias insalubres da Encardideira, que produziria ainda muito mais ouro até apresentar os primeiros sinais de possível exaustão. Então, já adoecido e julgando-a exausta, Augusto de Andrade vendeu a Mina da Encardideira para Chico, tornando-o o primeiro negro proprietário de lavra de ouro de Minas Gerais. Após o negócio, a Mina da Encardideira, milagrosamente, passa a produzir ainda mais ouro do que antes, milagre que é atribuído à Santa Efigênia, a santa africana. Então, Chico compra mais e mais alforrias e  manda construir no alto do Morro da Cruz a majestosa Igreja de Santa Efigênia, que é caiada com o ocre chamejante do minério da Encardideira .

A sociedade de antigamente era muito diferente da nossa atual. Ela era, por exemplo, muito mais organizada. Aos homens livres era, praticamente, obrigatória a associação às irmandades religiosas que regiam todos os aspectos da vida do indivíduo, desde os registros civis, passando pela alfabetização, formação ética, cultural, etc, indo até a assistência social.  E cada irmandade possuia seu estatuto e diretoria própria que era representada por um presidente. Assim, uma vez libertos, Chico e seus súditos se viam obrigados a se associarem a uma irmandade religiosa. A escolhida foi a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos Alforriados. Assim, em 6 de janeiro, data do calendário católico em que é comemorado o dia de Reis, no ano de 1747, ou seja,  muito antes de Dom João VI ser entronado rei, no Rio de Janeiro, Chico é, solenemente, coroado pelo bispo de Mariana rei da Irmandade do Rosário dos Homens Pretos e passa a viver com sua corte no Palácio Velho.

Também tendemos a pensar que antigamente não existia mídia. Outro erro. Característica marcante da sociedade mineradora do sec. XVIII é, justamente, a profusa adoção de diferentes meios de mídia, que eram quase todos monopólio da Igreja. Antigamente não existiam as mídias modernas, como o rádio, a TV e a internet. Todos os outros meios de mídia como a literatura, a pintura, a escultura, a música, o teatro, etc, já existiam há milênios. A própria missa, cuja freqüência também era obrigatória, constituía poderoso meio de mídia, assim como as imagens, os retábulos e altares barrocos, etc.  Outro meio de mídia, especialmente, marcante na sociedade mineradora do sec. XVIII eram as procissões religiosas. A única procissão do catolicismo é a de Corpus Christi. Em Ouro Preto, ainda hoje, há procissões religiosas quase que diariamente, muitas das vezes, mais de uma por dia. O mineiro é, extremamente, cerimonioso, midiático e as procissões protocolares pelas ruas dos núcleos mineradores, que também dependiam de autorização da Igreja, eram uma forma, sobretudo, de afirmação social, de circulação dos valores em que se fundavam as irmandades, de se influenciar e de se relacionar com as irmandades de outras paróquias, etc. 

Assim, naquele distante dia de reis do ano de 1747, Vila Rica foi surpreendida por uma procissão festiva que desconhecia. Agora, consagrado como Chico Rei e acompanhado de sua rainha e de sua corte, todos trajados em ricas indumentárias, o cortejo toma as ruas de Vila Rica numa numerosa procissão, que, seguida por músicos e dançarinos ao batuque dos tambores, caxambus, marimbas e ganzás resgatados do Congo, se desdobra em vários atos cerimoniais, encerrando-se num banquete triunfal.  E para se enquadrar ao ideário colonial, Chico Rei, habilmente, substitui o deus pagão Zambi-Apungo, de quem era sumo-sacerdote no Congo, pelas evocações à N. S. do Rosário. A esta festa se chamou Congado, em referência ao reino original de Chico Rei, o Congo.   

O desconhecimento de nossa história nos leva ainda a crer que nossa matriz cultural africana foi assimilada com mais intensidade na Bahía, ou no Rio de Janeiro. Também não é verdade. Foi em Minas Gerais.

O pragmatismo português, aliado ao costume das alforrias e conjugado à maior quantidade de ouro já descoberta pela humanidade, literalmente, comprou pela liberdade de dezenas de milhares de escravos. O que mais chamava a atenção de quem visitasse a Vila Rica do sec. XVIII, principalmente, dos estrangeiros que a visitavam, era seu imenso contingente de pretos, pardos e mulatos libertos.

 A sociedade mineradora constituia-se, na verdade, de um lado, por uma elite branca, do outro, por um enorme contingente de escravos negros e, entre os dois, um ainda maior contingente de ex-escravos, que, uma vez libertos, passavam a compor uma pujante e diversificada classe média, dedicando-se à prestação dos mais variados serviços a que o ouro podia pagar, como carpintaria, costura, sapataria, forjaria, transporte, construção, comércio e muitos outros extintos hoje em dia. Muitos se tornavam artífices. Foi a primeira vez que o Brasil flexibilizou o modelo rígido da Casa Grande/Senzala. Donde se depreende que a primeira classe média do Brasil é preta. Aliás, Vila Rica estava tão predestinada a ser preta que até seu ouro era preto. A peculiaridade específica do PH das águas do Rio Tripuí, cantado na Arcádia Mineira como “Pátrio Ribeirão”, associada à presença de ouro e de ferro em seu leito, resultava num fenômeno natural de galvanização que revestia as pepitas de ouro com uma finíssima camada escura de ferro. Daí, o nome Ouro Preto.    

Exemplar típico da classe média de Vila Rica, constituída por ex-escravos, é o de Antônio Francisco Lisboa, o Mestre Aleijadinho, que, desconhecido das novas gerações de brasileiros e venerado na Europa como a encarnação mulata de Michelangelo, era filho da escrava Isabel e foi alforriado pelo pai português, quando de seu batismo, tornado-se mestre-artesão de extrema qualidade, respeitado e demandado por toda Minas Gerais. 

O fenômeno da massificação das alforrias em Minas Gerais é, extremamente, importante para a compreensão de como se deu a assimilação da matriz cultural africana em nosso país. Os EUA, por exemplo, onde também houve emprego massivo de mão de obra escravizada de origem africana é, no entanto, muito menos africanizado do que o Brasil. Isso se deve ao fato de que nos EUA não se praticava o costume das alforrias. Era quase impossível um escravo adquirir sua liberdade nos EUA. Diferentemente, do que ocorria na América Portuguesa, conforme demonstra a trajetória de Chico Rei. É claro que muito se assimilou da Senzala. É inegável, por exemplo, que o prato nacional brasileiro, a feijoada, tem sua origem na Senzala. Mas, muito mais se assimilou por meio do imenso contingente de ex-escravos, também chamados de forros, que tanto marcaram e movimentaram a sociedade mineradora. Ouso dizer até que se Chico Rei não tivesse existido, não haveria nem samba no Brasil. No Carnaval, por exemplo, quem saia às ruas de Vila Rica em cortejos para tocar tambores africanos eram os forros, nunca os escravos.  Ao escravo era proibida a participação no Carnaval, a filiação a irmandades religiosas, etc. E muitos dos forros eram congadeiros. Os tambores que repicavam no Congado eram os mesmos tocados no Carnaval. Claro que o Samba não veio do Congado. Mas, foi a ascensão social do negro na sociedade mineradora, representada pelas dezenas de milhares de alforrias e pela posterior associação à irmandades do Rosário, que permitiu uma muito maior assimilação da matriz africana, que mais tarde, produziria o samba, pois o Congado se tornou um padrão de libertação e de inclusão social de escravos que se difundiu por quase toda a colônia. É muito difícil encontrar dentre as centenas de núcleos mineradores de Mias Gerais do sec. XVIII algum que não tenha sua Igreja de N. S. do Rosário dos Homens Pretos Alforriados e sua respectiva Guarda de Marujos. Muito além de Minas Gerais, ainda hoje existem Guardas de Marujos do Congado em São Paulo, Rio de Janeiro, Goiás, Mato Grosso, Tocantins, Bahía, etc.  Como dito, a Proclamação da República não foi capas de derrubar a monarquia de Chico Rei.

Então, da próxima vez em que se deparar com um cortejo de marujos de N. S. do Rosário na rua, lembre-se que o Congado não é apenas folclore. Muito mais do que folclore, o Congado foi um padrão de libertação em massa de escravos e a primeira grande afirmação da cultura negra na sociedade brasileira, amplamente, responsável pela assimilação da matriz africana no Brasil. Não somos um país de degredados, como, falsamente, nos ensinaram nos bancos escolares. Somos um país de reis e rainhas. E um deles fundou as bases de seu reinado de maneira tão emblemática, extraordinária e transcendente que sua coroa ainda hoje pode ser vista a desfilar pelas ruas de Minas Gerais, etc, nas festas do Dia de Reis, N. S. do Rosário, São Benedito, Santa Efigênia, etc.                  

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