sexta-feira, 22 de fevereiro de 2019

As Três Fabulosas Fábricas de Ferro de João e Francisco Monlevade


É muito comum se deparar no romanceiro local com o seguinte conceito sobre o empreendimento erguido e mantido aqui, a partir de 1828, pelo metalúrgico e minerálogo francês, João Antônio de Monlevade: uma pequena forja catalã, fabriqueta de enxadas e produtos agrícolas.
Contudo, os registros históricos conferem outra dimensão para o empreendimento de Monlevade e revelam que, muito antes da instalação do grande capital siderúrgico, que se deu por meio da Belgo-Mineira, a partir de 1935, houve, na verdade, nada menos do três fábricas de ferro conduzidas pela Família Monlevade.
O próprio termo “forja catalã”, muito utilizado para caracterizar o estabelecimento de Monlevade, não é suficiente para tal, já que catalão era apenas o método propositalmente empregado pelo patrono do Município para a produção de um tipo específico de ferro e muito demandado naquele momento pela mineração do ouro em Minas Gerais.
Nem de longe, Monlevade foi apenas uma pequena forja, mas sim o que os historiadores definiriam como a mais importante Fábrica de Ferro do Brasil Império. E também não se dedicava, majoritariamente, à produção de artefatos de ferro para a agricultura, como se conta. É verdade que a enxada de 3 libras (1,5 quilo) de peso, forjada em ferro maleável por Monlevade era especialmente famosa em Minas Gerais. De fato, era seu produto mais popular, a ponto de levar seu nome. Naqueles idos, Monlevade era, popularmente, sinônimo de enxada durável, resistente e, portanto, o terror dos preguiçosos a quem se advertia: “fulano precisa é de uma boa Monlevade”. Todavia, o principal produto da Fábrica de Ferro Monlevade não era a enxada. Eram as cabeças de 80 quilos de ferro forjado para o trituradores utilizados no processamento do quartzito aurífero retirado das galerias subterrâneas pelas companhias inglesas mineradoras de ouro, instaladas às dezenas por Minas afora, a partir do segundo quartel do sec. XIX, chamadas por Monlevade de “mãos de pilão”, que para serem fabricadas em escala industrial e transportadas até as Minas de Ouro, algumas a 80 léguas de distância, como a Mina de Morro Velho, exigiam imenso esforço de trabalho e coordenação. Apenas no Morro Velho trabalhavam, dia e noite, movidas por rodas hidráulicas, 36 mãos de pilão, cujas cabeças forjadas de 80 quilogramas de ferro maleável, demandavam substituição ao final de 3 ou 4 meses de operação contínua. A verdade é que Monlevade, por mais de 50 anos, foi o fornecedor exclusivo de uma imensa gama de artefatos de ferro para as Minas de Ouro da região.
E ainda integrados à atividade da forja funcionavam, coordenadamente, outros tantos empreendimentos sem os quais tudo aquilo jamais seria possível. Em torno de uma forjaria muito bem qualificada, composta por mestres-ferreiros treinados pelo próprio Monlevade, também funcionavam os empreendimentos de produção em escala de carvão, da mineração, da abertura e manutenção de canais para a condução da água para a força motriz das rodas hidráulicas, da abertura e manutenção de estradas carroçáveis, do lançamento e manutenção de pontes, da fabricação de carretões de quatro rodas para o transporte da produção, da criação de gado para a condução dos carretões, do transporte das peças de ferro até as Minas de Ouro, da pedraria, da marcenaria, etc. E ao longo das várias décadas em que funcionou, não existiu, sob o ponto de vista estrutural do estabelecimento em si, apenas uma Fábrica de Ferro.
Elas foram três: a primeira, chamada por Monlevade de Fábrica Velha, funcionou de 1828 a 1853, encontrava-se instalada a 20 metros abaixo do Solar Monlevade, entre aquele e a margem do Rio Piracicaba e era equipada com os marteletes hidráulicos e as máquina importadas da Inglaterra; a segunda, chamada por Monlevade de Fábrica Nova, encontrava-se instalada numa área maior abaixo da primeira, funcionou de 1853 a 1891 e era equipada com as mesmas máquinas da primeira; e, por fim, a terceira, a Fábrica de Ferro de Francisco Monlevade, neto do patrono do Município, que em sociedade com a Companhia Nacional de Forjas e Estaleiros do Barão de Mauá, reequipou de forma extraordinária o empreendimento, com maquinário Frances e estadunidense, instalando-o na margem esquerda do Rio Piracicaba, abaixo do que hoje é a Represa do Jacuí.
Em 1853, Monlevade terminava a casa da oficina da segunda fábrica de ferro, muito mais ampla, preparando-se para retirar as máquinas da primeira, que já havia funcionado por 25 anos, e reassentá-las naquela, dando início à segunda fase de operação de seu fabuloso empreendimento. Em 12 de dezembro daquele ano, a par dos esclarecimentos sobre a siderurgia em Minas Gerais, Monlevade subscreveu relatório ao governador mineiro, disponível para consulta no Arquivo Público Mineiro, com o qual descreveu sua indústria pormenorizadamente, registrando inclusive que, então, os edifícios de seu estabelecimento eram cobertos com 200 milheiros de telhas. Trata-se de importante informação que permite se ter uma ideia do tamanho da estrutura do estabelecimento de Monlevade naquele momento. Ora, considerando que o metro quadrado de telhado comporta até 20 telhas, das pequenas, e que a Fazenda Carvoeira e Fábrica de Ferro de Monlevade contava com edifícios cobertos por 200 mil telhas, pode-se afirmar que naquele momento Monlevade possuía uma estrutura considerável de, pelo menos, 10 mil metros quadrados de área construída, coisa nada pequena para meados do sec. XIX ou mesmo para os dias atuais. No relatório, Monlevade ainda registra que também contava com 150 escravizados, treinados na arte do ferro e para os diversos serviços do estabelecimento. Número que destoa bastante do cenário bucólico e romantizado de uma pequena forja catalã, pois mesmo hoje, um empreendimento de 150 trabalhadores não pode ser considerado pequeno. Sobre a sua indústria, Monlevade escreveu:
[...]
"Ele (o estabelecimento) possui à porta da fábrica o mineral puro e em abundancia tal que poderia abastecer a Europa inteira e demais o hidrato de ferro, o manganês e outros minerais úteis para o mesmo fim.
Na mesma fazenda há quatro sesmarias de mato para o carvão e facilmente se pode aumentar este patrimônio querendo-se.
Dois ribeirões, com os regos já tirados, trazem para a fábrica em tempo da maior seca, muito mais água do que necessita para o consumo dela, colocada, aliás, a 112 pés acima do Rio Piracicaba e cujas águas poderiam cobri-la até se fosse necessário.
Tem abundância de madeiras grossas da melhor qualidade para as construções, máquinas, etc, etc e pastos quanto bastam para o custeio do estabelecimento, aliás, colocado perto de fazendeiros, os quais por preço cômodo a abastecem de víveres.
Existem 150 escravos de serviço, já adestrados na arte do ferro, na fabricação do carvão à moda européia, na manipulação de ferros de todas as formas e tamanhos. Está hoje entre mãos para a companhia do Morro Velho um aguilhão (eixo de transmissão de roda hidráulica) que não pesará, depois de concluído, menos de sessenta arrobas (900 quilos). Já tem ido para a companhias do Gongo (Soco), no Morro da Água Quente, peças maiores, tudo feito de ferro maleável e por conseguinte muito mais custoso. Entre os escravos há também ótimos pedreiros, carpinteiros, telheiros, carreiros, arrieiros, etc, etc. Existe na Fazenda para cima de cinco léguas de estradas de carro, entre as quais 2 ½ admitem carros europeus de quatro rodas. Tem duas pontes lançadas sobre o Rio Piracicaba, as quais por longos anos facilitaram o ingresso do carvão etc, etc, de ambos os lados do mesmo. Há edifícios para todos os cômodos e necessidades, cobertos com duzentos milheiros de telhas e um ultimamente concluído, destinado ao estabelecimento das máquinas vindas da Europa para obter com elas ferros de variadas bitolas... Enfim tem carros grandes de quatro rodas para condução do carvão, das pedras, há carretões à moda européia, etc, etc e um massame (espécie de ponte rolante) não pequeno para uma indústria em atividade há anos.
[...]
Abaixo (do Solar) a 88 pés (20 metros) de altura está situada a fábrica velha a uma distância tal que não incomoda, nem o calor, nem a poeira e a fumaça nem os estrondos das máquinas. Abaixo desta acabei a casa da nova em ponto muito maior. Segue ao depois o engenho de serrar. Ainda tem altura até o rio, para com a mesma água suprir ainda duas fábricas precisando. Das montanhas vizinhas desce um córrego... esta aguada é muito importante dando , mesmo no terreiro, impulso a um engenho de pilões, moinho para fubá à moda Européia, ralador de mandioca, ventilador, etc... Na fábrica velha existem duas rodas hidráulicas poderosas, três malhos, um de 80 arrobas de peso (1.200 quilos) para as obras grandes, um de 15 arrobas (225 quilos) e um pequeno de 5 arrobas (75 quilos) no meio das tendas para a fabricação do ferro miúdo e obras pequenas. Tem seis fornalhas de fundir ferro, sempre em atividade, três forjas e quatro tendas. Um bicame, ou tanque d’água, colocado a trinta palmos acima do fundo do canal e no meio da casa está recebendo a aguada toda do ribeirão, dando a força motriz para as duas rodas e o vento necessário por meio de quatro trompas, repartido com canais de braúna por todas as partes. Há também, duas mãos de pilão movidas por umas das rodas, as quais servem para reduzir em pó a pedra de ferro, quando não se emprega a jacutinga na fundição, assim como para sacar certas borras ricas de partículas de ferro as quais lavadas e refundidas dão um ferro de superior qualidade. Por dia rende a fábrica 30 arrobas (450 quilos) de ferro quase todo reduzido em obras, principalmente, em mãos de pilões para as Companhias Inglesas e Mineiras Brasileiras, aguilhões, bigornas, engenhos de serrar madeira, moendas para espremer a cana de açúcar , etc, etc. A fábrica nova é um edifício de 240 palmos de comprimento, 104 ditos de largura, e 45 palmos de altura destinado a receber maquinismo para obrar o ferro, etc. A mesma casa contém o engenho de serrar a madeira com rapidez. Empregando juntas as folhas que se quiser, assim como possui uma máquina de tornear ferro e as madeiras em todos os tamanhos”.
Em 1891, 19 anos depois da morte de Monlevade, sua Fábrica de Ferro sofria os efeitos da concorrência estrangeira, beneficiada pela chegada da ferrovia à Ouro Preto, etc. Fazia-se preciso reajustar a Fábrica de Ferro Monlevade à nova ordem mundial e aos ventos da Revolução Industrial. Agora, quem entra em cena é Francisco Monlevade, neto do patrono local e também engenheiro. Sem contar com o capital necessário para modernizar a indústria do avô segundo as exigências da época, Francisco a vende à Companhia Nacional de Forjas e Estaleiros do Barão de Mauá, por 1 mil contos de réis, mediante condição de permanecer à frente da administração do estabelecimento. Nesta terceira fase do empreendimento, é completamente abandonado o antigo local, abaixo do Solar, estabelecendo-se a casa da nova oficina na margem esquerda do Rio Piracicaba, abaixo do que é hoje a Represa do Jacuí. Neste período, a Fábrica de Ferro Monlevade foi, integralmente, submetida aos efeitos da Revolução Industrial, sendo equipada com uma série de maquinismos impressionantes, desenhados em Art Déco, entres os quais se destacam o Martelo-Vapor estadunidense e a Turbina Hidráulica francesa de 600 cavalos. Quase todo o acervo do Museu Monlevade é, atualmente, composto pelas máquinas da Fábrica de Ferro de Francisco Monlevade, que produzia 4 vezes mais ferro do que as duas primeiras do avô. E o mais interessante é que o prédio que abrigou a Fábrica de Ferro de Francisco Monlevade ainda existe e, atualmente, alberga a casa de máquinas da Represa do Jacuí, no bairro de mesmo nome. 




Trata-se do edifício da foto, igualmente em Art Déco, que, a partir de 1935, foi aproveitado pela Belgo Mineira para instalar as turbinas e geradores da Hidrelétrica do Jacuí. Na foto anexa, gentilmente cedida por minha amiga Corina Grosch, neta do engenheiro luxemburguês, Charles Diederich, encarregado por Louis Ensch de instalar a Hidrelétrica do Jacuí, pode-se ver a turbina francesa de 600 cavalos-vapor ainda instalada no pátio, ao lado da casa da oficina da Fábrica de Ferro de Francisco Monlevade. Ou seja, o Município de João Monlevade também tem um edifício da Companhia Nacional de Forjas e Estaleiros e não sabe.
Na edição nº 7, de 15 de abril de 1894, da Revista Industrial de Minas Gerais, disponível para consulta no Arquivo Público Mineiro, existe uma completa descrição da Fábrica de Ferro de Francisco Monlevade, feita pelo também engenheiro francês e professor da Escola de Minas de Ouro Preto, Paul Ferrand, que transcrevo a seguir:
"USINA MONLEVADE
Esta usina está colocada à margem esquerda do Rio Piracicaba a 14 km ao N. do Arraial de São Miguel de Piracicaba. Ela pertence à Companhia Nacional de Forjas e Estaleiros desde 1891; sendo anteriormente de propriedade do Sr. João Monlevade. Neste tempo se fabricava o ferro pelo processo direto italiano com dois fornos baixos produzindo diariamente 500 quilogramas de ferro em barras. Hoje ela acaba de passar por uma transformação completa sob direção do Sr. Francisco Monlevade, neto do presidente e engenheiro da Companhia. Foi completamente abandonado o local da antiga forja, estabelecendo-se a nova oficina num lugar mais apropriado aos maquinismos modernos.
A nova fábrica compreende 5 fornos catalães americanos “Bloomary Process”, dispostos em duas fiadas, um martelo a vapor com uma caldeira de vapor horizontal, um laminador para ferros de pequenos perfis, um forno de reverbero a gás para caldeamento das lupas e 4 tendas.
Atualmente trabalham só dois fornos; dois outros estão já montados , e o último se acha em construção. Cada forno faz uma operação em 3 horas ou 8 operações em 24 horas, dando 1 tonelada de ferro em barras; isto é, 125 quilogramas por operação, repartidos em 5 barras quadradas de 6 centímetros de lado, pesando em média 25 quilogramas cada uma. A produção diária total é por conseguinte de 2 toneladas.
Os fornos são munidos de aparelhos de aquecimento do sistema Calder e os gases ainda quentes passam a redor da caldeira que fornece o vapor necessário ao martelo-vapor para se escaparem depois pela chaminé . O aparelho de um dos fornos que não trabalha serve por enquanto para aquecer o vento soprado no gasógeno do forno de caldeamento. Este gasógeno de cuba, utiliza como combustível os resíduos em pó e miúdos de carvão de madeira impróprios para o forno. O martelo-vapor é de duplo efeito; seu peso é de 1,5 tonelada e seu levantamento é de um metro; serve para esbravejar (forjar) as bolas e lupas. O laminador serve para espichar as barras quadradas depois de caldeadas no forno de reverbero para obter o ferro em barras de diversos perfis.
As águas passam com uma altura de queda de 16 metros numa turbina horizontal de força de 600 cavalos-vapor. Esta turbina serve por enquanto para mover o laminador e o ventilador Roth que sopra o vento nos diversos fornos, além disso ela servirá para mover diversos outros maquinismos ainda não montados , como um laminador para fabricação de enxadas , máquinas de fazer machados, ferraduras, pregos etc. A oficina, que ocupa uma superfície de 75 metros de comprimento sobre 31 metros de largura, estará completamente acabada no fim de maio próximo , segundo espera o Dr.Francisco Monlevade, encarregado da construção e da direção deste novo e interessante estabelecimento".
A Fábrica de Ferro de Francisco Monlevade funcionou até 1897, quando a Companhia Nacional de Forjas e Estaleiros faliu, forçando seu fechamento.
Como se viu, além de terem sido três os estabelecimentos instalados e mantidos pelos Monlevade nesta terra, de pequena forja catalã fabriqueta de enxadas, como se conta, eles não tinham nada.

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