Transcorria o mês de
fevereiro de 1828. Punha-se o sol diante do Atlântico, ao fundo no horizonte.
Estávamos no Quartel de Regência Augusta, na barra do Rio Doce, Província do
Espírito Santo. Era o fim de um longo e pesado dia de trabalho. Desde muito
cedo, os índios faziam a baldeação das 500 arrobas (7.500 quilos) de maquinário
recém chegado do Rio de Janeiro numa embarcação à vela, de dois mastros, para bordo de 12 imensas canoas militares
(foto), as quais deveriam conduzir rio acima, fazendo uso de varames, remos,
cordames, roldanas e guinchos, a fim de vencer numerosas cachoeiras, corredeiras e
tantos outros obstáculos, numa empreitada braçal até então jamais tentada, cuja
tarefa central cingia-se em transportar para o interior de Minas Gerais as máquinas para a Fábrica de Ferro do minerálogo e engenheiro francês João Antônio de Monlevade.

Mas, depois de experimentar
todo aquele peso nos braços e sem saber do que se tratava aquela carga, logo
após acomodá-la nas canoas para a viagem, o índio, simplesmente, não
compreendia porque deveria transportar para o sertão aqueles objetos pesadíssimos
de ferro fundido, cilíndricos, de formas estranhas, que só podiam ser erguidos
com auxílio de pequenas gruas e a força de muitos homens. Para os olhos do
índio, o Martelo de Forja a Vapor de Monlevade (foto) não era mais do que uma
grande carranca, cujo apenas um dos malhos pesava 80 arrobas (1.200 quilos). Os
índios então jogaram os remos no chão e cruzaram os braços. O comandante da
expedição, Lourenço Archilles Lé Noir, deu ordem de descanso e mandou servir o
jantar, já era início da noite. Uma fogueira foi acesa no largo de areia da
praia e os índios formaram uma grande roda em torno dela. Mal terminou de
comer, Lé Noir arrastou para o centro da roda um baú que retirara de uma das
canoas de suprimentos e determinou que seu conteúdo fosse virado ao chão: eram
machados, facões, foices, enxadas, alavancas, martelos, etc, tudo feito de
ferro. Os índios se entreolharam e, sem cerimônia, disputaram as ferramentas
que também lhes facilitavam muito a vida. Le Noir, então, se colocou a explicar
que todos aqueles objetos tão estranhos e pesados eram, justamente, máquinas
para fabricar, machados, martelos, facões, enxadas e peças muito maiores de
ferro, algumas do tamanho de um boi. Então, o índio quis ficar com o
equipamento e pediu para que se iniciasse a fabricação dos machados logo ali. E
todos, em coro, gritaram “auê”! O pajé pediu para ver a fabricação de um boi de ferro,
advertindo que era ali que as máquinas deveriam ficar, pois o deslocamento de
tão pesada carga pela via fluvial poderia perturbar os espíritos do rio e
despertar a ira de Tupã . O comandante Le Noir, que se divertia com a situação,
seguiu a explicar que para se fabricar um boi ou um machado de ferro eram
necessários não apenas aquelas máquinas, mas também o minério de ferro que se
tira do solo e de um tipo muito especial de pajé capaz de controlar o fogo para fazer o
trabalho e, a cada vez, que pronunciava a palavra “fogo”, arremessava um
punhado de pólvora na fogueira, para deleite dos índios. E disse que a 70
léguas (500 quilômetros) rio acima, em meio a grandes montanhas de puro ferro,
esperava por aquele maquinário um homem diferente, o tal tipo de pajé, que era o
único naquele país capaz de controlar o fogo e de fazer funcionar aquelas
máquinas para fabricar um boi de ferro, se fosse preciso. O nome dele era Monlevade.
Então, as instruções eram para que, no dia seguinte, todos os índios se
juntassem à expedição que partiria ao alvorecer e deveria vencer todos os
obstáculos previstos e imagináveis, a fim de entregar a preciosa carga para
Monlevade, nas terras altas da Província de Minas Gerais, muito distante dali.
O comandante encerrou a assembléia e recolheu-se ao quartel. Então, aí sim, houve
muita cerimônia! Os índios tomaram pelas mãos as ferramentas de ferro e,
cerimoniosamente, cantaram e dançaram com elas até tarde da noite. Improvisaram
um boi de palha em que os dançarinos se metiam dentro e, revezando, eram
reverenciados por todo o grupo. O pajé oferecia o machado aos céus e pedia à
Lua cheia que lhes mandasse mais machados. Os índios botocudos (imagens), também
conhecidos como bugres, habitavam toda a bacia do Rio Doce e foram os primeiros
a navegaram por aqueles rios. Extremamente, bravo e guerreiro, o botocudo também era antropófago. Mas, não se alimentava de carne humana, cotidianamente.
O botocudo não devorava qualquer um, comia apenas o inimigo que demonstrasse
ser o mais bravo e corajoso na batalha. Assim, o botocudo acreditava que
incorporava a coragem de seus oponentes. O local escolhido para instalar a
Fábrica de Ferro de Monlevade era em São Miguel, às margens do Rio Piracicaba,
afluente do Rio Doce, no extremo oeste da abrangência nativa dos botocudos. A
ideia de contar com uma fábrica de ferro que também produzisse machados, facões
e tantas outras ferramentas úteis dentro de seu território pareceu muito auspiciosa
para o índio. Já de madrugada, a aldeia estava inteira na praia para auxiliar
na partida de cerca de uma centena índios, que então se tornavam intrépidos
expedicionários, decididos a transpor cachoeiras, corredeiras e tudo mais que
fosse necessário a fim de entregar a salvo aquela carga extraordinária para o
tal pajé chamado Monlevade, que os aguardava, ansiosamente, rio acima. Reuniram
muitos remos, arcos, flechas e tomaram seus lugares. Muitos se pintaram para a
guerra, como se conhecessem os perigos que enfrentariam. O boi de palha foi devidamente acomodado e amarrado na proa da primeira canoa do comboio e submetido à devida pajelança, como se estivesse ali para enfrentar qualquer mal que pudesse sobrevir aos expedicionários. Sobre ele os índios colocaram uma grande peça de couraça de tamanduá, resistente a flechadas e muito típica da indumentária de guerra do botocudo.


Assim, devidamente abastecida de mantimentos, dos equipamentos
necessários, de muitos remos, arcos, lanças, flechas e das 500 arrobas da
preciosa carga,
naquela manhã, zarpou de Regência no Espírito Santo, sob o comando de Lourenço
Archilles Le Noir, a histórica expedição tripulada pelas divisões militares de outro ilustre francês, Guido Thomáz Marlieri, e por cerca de uma centena de bravíssimos índios botocudos, que transportariam, através de arriscadíssima e inédita
navegação pelos rios Doce e Piracicaba, até o interior de Minas Gerais, o
maquinário indispensável para a fundação da mais importante fábrica de ferro a
operar no Brasil Imperial. Tudo, com muita cerimônia indígena e determinação.
Nem pareciam aqueles temidos antropófagos que eram.
Muito mais tarde, depois de
se tornar o maior fornecedor de artefatos de ferro das companhias mineradoras
de ouro, João Antônio de Monlevade escreveria sobre o poder civilizatório do
ferro:
“O futuro grandioso desta terra ... não está no ouro, nos
diamantes, mas sim no ferro este grande agente da civilização ... sem o qual os
países, os mais civilizados, em poucos anos estariam reduzidos ao estado
selvagem”.