João Monlevade, meados do ano de 1854.
Meu nome é Januário,
sou escravo de Angola e mestre-carreiro na Fábrica de Ferro Monlevade. Nos
próximos dias, conduzirei com o auxílio de meu ajudante, Francisco Ferreiro, o
carretão de quatro rodas, puxado por 7 juntas de bois, que transportará o
aguilhão de 60 arrobas (900 Kg) de peso, daqui, da porta da forja, até a Mina de Ouro do Morro Velho, a 20 léguas
(130 Km) de distância, onde deveremos entregá-lo a salvo, sem a menor falência,
e no menor prazo possível.
O aguilhão é a mais
pesada peça de ferro, forjada em Monlevade. Muitos já foram produzidos e
enviados para as companhias inglesas mineradoras do ouro, alguns deles, pesando
mais de uma tonelada. Trata-se de um eixo de transmissão, aplicado na montagem
do Engenho Mineiro de Pilões, aparato mecânico movido por roda hidráulica,
muito empregado pelas Companhias Mineradoras na trituração do quartzito
aurífero retirado das galerias subterrâneas para posterior lavagem e apuração
de grandes quantidades de ouro. A ferragem do Engenho Mineiro de Pilões,
inclusive as cabeças de seus trituradores, que são blocos sólidos de 80 quilos
de ferro forjado, é também toda produzida em Monlevade e enviada para as
maiores Minas da região. Como é muito pesado, para se fabricar um grande
aguilhão demanda-se todo o ferro produzido em dois dias inteiros de operação na
Fábrica Monlevade e o trabalho coordenado dos melhores mestres-ferreiros. Logo,
ele é modelado, empregando-se apurada técnica de forja, de solda e de
alinhamento dominadas apenas em João Monlevade. “Não se tem notícia no Império
Brasileiro de outra fábrica que produza peças de ferro tão pesadas e bem
acabadas”, é o que não se cansa de repetir o Capitão Monlevade.
A viagem para o Morro
Velho é a maior que fazemos, regularmente. Da
Fábrica, partem vários ramos de estradas carroçáveis que levam a todas as
direções. A maior freqüência das viagens de carro é para Mina do Gongo Soco,
que é o principal cliente da Fábrica de Ferro. Também viajamos muito para a
Mina de Pari e para as cidades de Itabira, Santa Bárbara, Caeté, Sabará, etc. Nos meses chuvosos, as
estradas ficam, praticamente, intransitáveis. O pouco trânsito de carretões de
quatro rodas se limita aos serviços internos que não podem parar na Fábrica de
Ferro, como o transporte do carvão, do mineral de ferro, etc. Durante o período
de chuvas, o escoamento da produção fica, virtualmente, interrompido, a não ser
pelo deslocamento de poucas tropas que se aventuram a levar artefatos mais
leves, como ferraduras, cravos, ferramentas de mão, etc. Os produtos mais
pesados, que não são poucos, são estocados, aguardando o tempo seco favorável
para que sejam transportados, conforme as encomendas. Na primeira lua cheia do inverno, quando firma
a estiagem, inicia-se a temporada das longas viagens de carro na Fábrica
Monlevade.
Desta vez, quem vai
comigo é o Francisco Ferreiro. Já conduzi muitos carretões, os mais pesados.
Mas, será a primeira viagem de carro de Francisco Ferreiro. Como o próprio nome
diz, Chico Ferreiro era mestre-ferreiro, habilmente,
treinado em pessoa pelo próprio Capitão Monlevade. Ele manipulava ferros de
todas as formas e tamanhos. Fazia cravos perfeitos em velocidade fabril,
fechaduras confiáveis, os melhores cutelos, almofarizes, dobradiças retilíneas,
moendas e até uma inacreditável máquina de costura que ficou muito famosa. Chico
Ferreiro era sempre o preferido pelo Capitão Monlevade para liderar os trabalhos
de solda e de alinhamento preciso dos aguilhões. Mas, foi, justamente, durante
o alinhamento de um aguilhão maior, que conduzi para a Companhia do Gongo Soco
na última temporada de carro, que Chico Ferreiro se acidentou no maior malho
hidráulico da Fábrica, machucando-se, gravemente. Quase o perdemos. Ele passou
muitos dias acamado, teve muita febre. Mas, com a graça de Deus, o Chico
Ferreiro deixou de ter febres, levantou-se da cama, já se recuperando bastante.
Então, o Capitão Monlevade determinou que o Chico se afastasse do trabalho nas
Tendas de Ferreiro e que eu o treinasse para trabalhar nas viagens de carro,
como mestre-carreiro. Existe uma rígida hierarquia dentro da Senzala Monlevade.
Apesar de sermos todos escravos, os mestres-ferreiros são os que se acham por
cima da carne-seca. Eles são cheios de empáfia. Tudo de melhor é para eles. Em
seqüência, são os carvoeiros. “O carvão não pode nunca faltar”, diz sempre o
Capitão. Depois, somos nós, os carreiros, seguidos pelos tropeiros,
carpinteiros e pedreiros. Ainda existem os escravos que servem à Casa Grande e
se equiparam aos mestres-ferreiros. Tudo é muito complexo em Monlevade! Assim,
mesmo que sem merecimento, o Chico Ferreiro se sente “rebaixado” para o posto
de carreiro, apesar de seguir vivendo na Senzala dos Ferreiros. Lá, por exemplo,
tem a melhor comida. Então, ele não está muito feliz. Mas, acho que o Chico Ferreiro vai acabar
compreendendo que conduzir uma tonelada de carga num carretão de quatro rodas,
tracionado por muitas juntas de bois até a Mina do Morro Velho, em Congonhas do
Sabará (Nova Lima), a 20 léguas de distância, pode ser uma proeza tão grande
quanto fabricá-los. Afinal, do que adianta forjar as maiores peças de ferro já produzidas no Império Brasileiro, se
não pode transportá-las até o destino, onde serão utilizadas?!!
O transporte de um
pesado aguilhão até o Morro Velho demanda planejamento e estrutura. As
condições de trafego da estrada são mantidas pela Fábrica de Ferro Monlevade. A Capitão também é conhecido pelas muitas estradas que abriu e mantem. Há
pousos pré-determinados, onde os animais descansarão e serão alimentados. São
14 cabeças no total. É necessária muita atenção para com os animais, saber a
hora de puxar o carro, de alimentar o gado, dar de beber, de aliviar a marcha e de descansar. Se eu perder um boi, vou para o tronco. Se
quebrar uma roda do carro, vou para o tronco. Se o Aguilhão virar na estrada, também vou
para o tronco. Difícil dizer o que é pior na escravidão, a violência física que
sofremos ou a violência moral, a que somos submetidos no sentido de não
podermos escolher sobre nosso próprio destino. Por isso, espero ansioso pelo
início da temporada dos carros de bois na Fábrica de Ferro Monlevade, pois é
quando posso viajar e ver coisas, lugares e pessoas diferentes. A temporada de
carro é uma ilusão de liberdade para o escravo-carreiro.
Os carretões
empregados neste transporte são de quatro rodas, à moda européia, os maiores e
melhores da região, fabricados pela própria Fábrica de Ferro, que também os
vende a quem se interessar. Existem muitos deles. São necessários, no mínimo,
dois condutores para guiar um carretão. Um vai a frente guiando o gado para
fazê-lo pisar no local certo da estrada, o outro segue no carro, acompanhando
as condições da carga, que deve estar muito bem amarrada, e acionando os freios,
quando necessário, sempre preparado para calçar as rodas, se for preciso. Levamos ainda mantimentos, material
sobressalente, lanternas, enxada, alavancas, cordame, etc. Partimos amanhã, ao
alvorecer.
1° Dia.
Sob os primeiros raios
de sol, deixo a senzala dos carreiros, dirigindo-me para o Solar, onde sou
recebido pelo próprio Capitão Monlevade para encarregar-me do transporte e
proceder às ultimas ordens. Atravesso o terreiro em direção ao grande curral
onde as 7 juntas de bois já se encontram dispostas na fileira de cangas,
prontas para o enganche no carro, que, por sua vez, acha-se estacionado na
Forja, logo abaixo, já carregado com o aguilhão. É na Forja que me encontro com
Chico Ferreiro para prender as juntas de bois ao carro, tendo, então, início a
nossa viagem. Seguimos em direção a São Miguel do Piracicaba sob forte cerração.
A estrada para São Miguel é muito boa e muito
movimentada pelas tropas. Quanto mais próximas da Fábrica, melhores são as
estradas. Ela segue pela margem esquerda do Rio Piracicaba e possui muitos
bebedouros para o gado. Eu e Chico Ferreiro vamos revezando. Quando ele segue
no carro, eu sigo na guia a frente dos animais e vice-versa. Chico Ferreiro é homem de poucas palavras,
enxerga mais do que fala. E mais ou menos na metade do caminho para São Miguel,
ele já dá sinal de rastro de onça. E era mesmo um rastro fresco de onça.
Não nos preocupamos, ela já deve estar longe. Perigoso é quando se encontra
rastro fresco de onça acompanhado do rastro do filhote. Então, ela quase sempre
ataca. Mas, sem o rastro do filhote,
seguimos em frente. Paramos um pouco para o gado descansar, ruminar e voltamos
logo em seguida para a estrada. Temos que chegar a São Miguel, antes do
anoitecer, para o pouso programado na propriedade de João Gomes de Freitas,
grande amigo do Capitão Monlevade. Mais uma légua de marcha a diante, chegamos
ao primeiro pouso. Somos recebidos pelos funcionários da propriedade e os bois
são conduzidos para o curral, onde descansarão e serão alimentados. Acendemos o
fogo, Chico Ferreiro vai cozinhar o feijão, para acrescentarmos a farinha e ao
toucinho que trazemos na lata. Após jantarmos, dormimos dentro do próprio
carretão.
2º Dia.
No segundo dia de
viagem, madrugamos para emparelhar o gado no carro e partimos rumo a Santa
Bárbara. Levamos bastante feno para a alimentação do gado no próximo pouso que
será à beira da estrada. Precisamos fazer render bem a marcha do carro para
chegarmos a Santa Bárbara em dois dias. A diante, na estrada, vai o rastro
fresco de uma mula. ¼ de légua depois, o rastro da mula coincidiu com pegadas
de gente. É... parece que o cavaleiro caiu da montaria. ¼ de légua mais a
frente, encontramos o cavaleiro, à pé e nada da mula, a não ser o seu rastro. Ele
nos disse que havia apeado para matar a sede no ribeirão, quando sua mula fugiu
em disparada. Sei não, o sujeito manca um pouco, está mais para queda. E
perguntou se podia pegar uma xepa no carretão. O Capitão Monlevade nos orienta
a não darmos carona no carro. Mas, deixei que ele pegasse “o boi” e nos acompanhasse
enquanto o rastro da mula se mantivesse no leito da estrada. Rodamos por todo o
dia, parando algumas vezes nas sombras e nos bebedouros, até alcançarmos o
ponto do próximo pouso, no fim da tarde, onde nos deparamos com a danada da
mula, lá paradinha, como se estivesse aguardando seu cavaleiro. Desta vez, vamos
pernoitar a beira da estrada. Nestas condições, o gado nem é retirado das
gangas, as juntas são apenas separadas. O gado é manso, obediente, quase treinado. Ele é alimentado com feno e passa a
noite ruminando. O cavaleiro da mula fugida seguiu apressado para Santa Bárbara. É noite de
lua cheia, a estrada está bem iluminada. Como o Capitão Monlevade nos orienta a não
movimentarmos o carro durante a noite, ficamos por aqui. Agora, é a minha vez
de preparar o feijão tropeiro. Chico Ferreiro acendeu as lanternas e foi buscar
lenha. Depois do jantar, dormimos.
3° Dia.
No terceiro dia de
viagem, já no alvorecer, apagamos as lanternas e o fogo, emparelhamos as juntas
de bois, enganchamos o carro e seguimos rumo a Santa Bárbara. Chico Ferreiro,
agora viu rastro de lobo na estrada. Em Monlevade existem muitos, eles só
atacam os galinheiros. Vamos parando nos bebedouros, alimentando os bois com
feno e respeitando o sol forte, apesar do inverno. Já no fim da tarde, chegamos
a Santa Bárbara, onde pousamos no mercado das tropas. Levamos o gado para o
curral e eu vou à mercearia comprar ovos e lingüiça para o feijão-tropeiro do
jantar. O Capitão Monlevade permite a nós, seus escravos, que aproveitemos o
domingo para lavrar ouro nos ribeiros. Então, agora é hora de gastar um
dinheirinho! Na volta compramos um monte de encomendas para toda a Senzala. Os que mais compram são os mestre-ferreiros. Por isso, a comida deles é tão boa.
4° Dia.
No quarto dia de
viagem, deixamos Santa Bárbara rumo a São João do Morro Grande (Barão de
Cocais). A estrada também é boa e movimentada pelas tropas. Saímos logo cedo e, ao meio dia,
já estávamos à sombra em São João, onde recebemos de uma tropa a notícia de que
dois dias atrás de nós vem subindo outro carretão de Monlevade, carregado de
ferragens para a Companhia do Gongo Soco. A partir daqui, é preciso vencer a Serra
da Piedade, no Morro Vermelho, e a Serra do Curral, em Congonhas do Sabará
(Nova Lima). O terreno é ladeirento, exige muito mais dos animais, dos freios
dos carros e dos carreiros. Pousamos, no fim da tarde, à beira da estrada, a meio caminho do Morro
Vermelho.
6° Dia.
No sexto dia de
viagem, partimos cedo, novamente. Subir a Serra do Morro Vermelho não é nada
fácil. Leva o dia inteiro! No início da noite, pousamos no arruamento do arraial. Haja lenha para a fogueira, basta o sol se por para o frio escorrer
das serras. A noite vai ser muito fria.
7° Dia.
O sétimo dia de viagem
amanhece tomado pela bruma. Não é possível ver nada além do nevoeiro, no Morro
Vermelho. Mas, vamos tratando de levantar o pouso e rumar para o Arraial dos
Raposos. As ladeiras são muitas, o carro
sobe e desce. É necessária muita precisão para subir os morros de uma vezada
só, o que é mais fácil. Nas descidas, é preciso acionar o freio no ritmo das
passadas dos animais. Chico Ferreiro vai revelando jeito para o freio. Chegamos ao Arraial dos Raposos, nosso
último pouso programado, no meio da tarde. Pousamos junto de umas tropas de
comércio, que seguiam para Sabará. Ouvimos muitas histórias até tarde da noite.
8° Dia.
No oitavo e último dia
de nossa jornada, rumamos muito cedo para a Companhia do Morro Velho, em
Congonhas do Sabará (Nova Lima), destino final do transporte. A passagem do
Arraial dos Raposos para o Morro Velho também é repleta de ladeiras. Mas,
mantendo uma boa passada do gado, chegamos lá no início da tarde. A Mina de
Ouro do Morro Velho é o segundo maior cliente da Fábrica de Ferro Monlevade.
Ela compra de tudo, desde ferramentas como almocafres, enxadas, pás e picaretas,
passando pela cabeça dos trituradores dos Engenhos Mineiros de Pilões, até
aguilhões de 1 tonelada.
Finalmente, depois de 20 léguas e muito suor, entregamos,
mediante recibo do gerente da Saint John d'el Rey Mining Company o aguilhão
de 60 arrobas de ferro forjado que será empregado no processo de mineração do
ouro. Descansaremos o restante do dia, para iniciarmos nosso regresso amanhã
bem cedo. Há mais cargas a serem transportadas, a temporada de carro está
apenas começando na Fábrica de Ferro Monlevade. Chico Ferreiro, então, me diz
que pode até mudar o nome para Chico Carreio, mas que vai continuar a almoçar e
a jantar na Senzala dos Ferreiros. Eu sigo minha vida na lida com o carro
e volto para casa com a sensação do dever cumprido e a ilusão de liberdade que
só um escravo-carreiro da Fábrica de Ferro Monlevade pode ter.