O texto é longo porque o assunto é sério.
Embora seja uma sociedade, brutalmente, racista, pouquíssima
luz é lançada sobre o chamado racismo de cor brasileiro. No Brasil, racismo não
se discute, não se esclarece e, portanto, não se supera. Pratica-se, sem pensar,
como quase tudo neste país. Contudo, não
pode haver dúvida de que é apenas no conhecimento que reside o poder para
superar o racismo, que causa tantas perdas ao Brasil. E acredito que a compreensão
sobre o racismo brasileiro pode transcorrer muito mais facilmente, abordando-se
o objetivo ou a finalidade a que se destina o racismo, em vez de insistir
apenas no entendimento sobre seus efeitos, que são muito mais evidentes, apesar
de pouco elucidativos. A exclusão
sócio-econômica e a marginalização de grande parte da população brasileira são
efeitos visíveis do racismo. Mas, qual é o objetivo deste processo? A resposta
é a exploração do trabalho.
A finalidade do racismo de cor brasileiro é sempre a
exploração do trabalho alheio. Se dissermos isso, olhando para o século XVIII,
em plena vigência da Escravatura Brasileira, fica muito mais fácil de enxergarmos
como o racismo se presta à exploração do trabalho alheio. A figura histórica do
escravo brasileiro, ou seja, daquele que, em função da estigmatização étnica,
foi submetido ao trabalho forçado, não remunerado, é autoexplicativa. Hoje, a
exploração racial do trabalho continua tal qual como no sec. XVIII, com a
diferença apenas de que todos fingem que ela não acontece. O afro-brasileiro
segue, na maioria esmagadora dos casos, sendo explorado em sua força de trabalho,
recebendo em troca do trabalho duro que executa apenas com o que subsistir,
como acontecia com os escravos do Brasil-Colônia. A abolição da Escravatura
Brasileira foi apenas um lampejo de direito que, absurdamente, apesar de
passados mais 130 anos de sua promulgação, ainda está muito longe de se
materializar em sua plenitude.
Por escravo no Brasil-Colônia deve-se compreender aquele que
se via forçado mediante violência moral e/ou física a renunciar à sua liberdade
e à autonomia de sua própria vontade para se submeter ao trabalho forçado, não
remunerado, em benefício de alguém. O
escravo não era sujeito de direitos, a não ser em relação aos direitos à
moradia, à alimentação e ao vestuário básicos. Segundo a legislação da época, ao
escravo a quem se negavam os diretos à moradia, à alimentação e ao vestuário
era facultada a prerrogativa de peticionar junto ao ouvidor para que seu senhor
fosse submetido às sanções aplicáveis. Os únicos direitos dos escravos eram,
portanto os de morar, alimentar-se e vestir-se, basicamente.
Até o advento da máquina a vapor, a escravidão foi a regra na
história da humanidade. Contudo, ela jamais foi associada à cor da pele. A palavra “escravo” tem sua origem no termo
“eslavo”, que designa povos europeus, de pele clara, cabelos e olhos claros,
muito escravizados durante a Idade Média. Até então, a justificativa para a
escravização se dava pela submissão militar dos povos. Na antiguidade, geralmente,
quem vencesse a guerra passava a deter o direito de escravizar o derrotado. A
escravidão só passa a se associar à cor da pele quando os Ingleses percebem o
imenso potencial lucrativo que o tráfico de pessoas pelo Atlântico poderia
representar no contexto de colonização das Américas, como de fato ocorreu. O
tráfico forçado de gente para trabalhar nas Américas rendeu imensas fortunas aos
ingleses. E como aquelas pessoas não haviam lhes feito nada para serem
escravizadas, nem mesmo haviam lhes declarado guerra até por falta de motivos
ou por causa da distância, os ingleses inventaram a chamada supremacia da “raça
branca” como justificativa para o comércio de gente, lançando,
convenientemente, sobre o tom escuro de pele o estigma da escravidão. Tudo, devendo-se apenas à conveniência do
lucro exorbitante, porque à luz da ciência, entre os seres humanos não há
raças. Aliás, diante do chamado “racismo de cor brasileiro” o primeiro conceito
a ser derrubado pela ciência é o de cor, já que segundo a Física, preto não cor,
é ausência de cor. Não quero com isso martirizar os ingleses por terem
concebido a doutrina do racismo, até porque também foram eles, posteriormente,
a inventarem a máquina a vapor, que, como já mencionado, foi o advento
tecnológico que possibilitou, tecnicamente, a abolição da escravidão no mundo
moderno. Não se pode julgar o passado
com os parâmetros do presente. Outro ponto positivo sobre os ingleses é que
eles não caíram na onda do nazismo na Segunda Grande Guerra, apesar de fundada
na mesma doutrina da “superioridade da raça branca”, que naquela ocasião se
mostrou tão hedionda e destrutiva ao mundo.
Para ser racista no Brasil não é necessário fazer um curso
avançado de racismo, basta repetir o comportamento da sociedade brasileira. O
racismo é velado no Brasil, apesar de visivelmente exposto na estrutura social
do país. No Brasil o racismo se assimila
por meio das convenções, dos olhares, dos comportamentos, da mídia, dos enredos
das novelas, e da estrutura social do país. Daí a definição de racismo
estrutural. Uma estrutura social que
mudou muito pouco nos mais de 520 anos de história do Brasil e que, na verdade,
apenas piorou depois da Abolição da Escravatura.
Durante a escravidão, não existiam favelas no Brasil. Sabe-se
que os escravos eram alojados nas Senzalas, cujas condições de insalubridade
nem pretendo abordar. Contudo, as Senzalas não eram excluídas, geograficamente.
Nos Engenhos de Açúcar e nas Fazendas de Café, elas não distavam muito da Casa
Grande e nos centros urbanos, como nas Minas de Ouro e Diamantes, as Senzalas
se localizavam nos porões dos sobrados, etc. Os escravos domésticos, que eram
muitos, geralmente se alojavam em algum cômodo da casa. Apesar de úmidas,
escuras e insalubres, a Senzalas se localizavam dentro da cidade. Pouco depois
de proclamadas a Abolição da Escravatura e a República, os ex-escravos foram
excluídos das cidades brasileiras.
A Abolição da Escravatura ocorreu a 13 de maio 1888, tendo
sido sancionada pela Princesa Isabel, a redentora. Estranhamente, não foram os
liberais que aboliram a escravidão no Brasil. Talvez, por causa disso o país
tenha sido o último a aboli-la. Logo após, em 1889, visivelmente, inconformada
e escandalizada com a libertação dos escravos, os liberais se engajaram no
golpe militar que proclamou a República e expulsou a Família Real do Brasil,
iniciando uma fase da história brasileira caracterizada por um racismo
exacerbado pouco abordado pela historiografia a que se chamaria de República
Velha. Era uma época marcada pela ascensão de movimentos positivistas e
integralistas, cujas bases doutrinárias se comunicavam com o mesmo ideário
racista, que pouco mais tarde produziria o nazismo na Alemanha e todas as suas
atrocidades contra a humanidade.
Ocorre que a abolição de uma escravatura profundamente enraizada
por mais de 350 anos não se concretizaria apenas com uma simples canetada, como
foi o que apenas ocorreu. Obviamente, tratar-se-ia de procedimento complexo,
composto de muitas etapas, das quais a liberdade então concedida pela Princesa
Isabel seria apenas o primeiro passo. Significa dizer que para fazer o
ex-escravo brasileiro deixar a condição de escravidão de fato, além de
libertá-lo do cativeiro, seria necessário integrá-lo à sociedade, garantindo ao
mesmo não apenas o direito à liberdade, como também a todos os demais direitos
inerentes à cidadania como o acesso à moradia digna, à educação de qualidade, à
saúde, à cultura, ao saneamento básico, ao ordenamento urbano, aos demais serviços públicos, ao consumo,
etc. Tudo o que jamais aconteceu, Dona Isabel não teve a menor chance. Logo depois
de sancionada a Lei Áurea, os “liberais” conduziram um golpe militar que
proclamou a Republica, expulsando do Brasil Dom Pedro II e a Princesa Isabel,
brasileiros natos, nascidos no Palácio São Cristóvão, no Rio de Janeiro, para
que não pudessem proceder à reforma agrária que garantisse acesso à terra e à
moradia aos ex-escravos e a seus descendentes. Assim, é preciso compreender que
a República foi proclamada no Brasil como instrumento para se interromper o
processo de abolição da Escravatura Brasileira.
Como já mencionado, neste período ainda não existiam favelas
no Brasil. No Rio de Janeiro, por exemplo, primeira capital da recém proclamada
República, os afro-brasileiros viviam numa série de numerosos e populosos
cortiços que existiam no centro antigo da cidade. Eram cortiços, mas neles havia
arruamento, ordenamento urbano, eles se localizavam dentro das paróquias que já
se transformavam em bairros, etc, etc. Era a cidade e, conseqüentemente, o acesso a
todos os bens e serviços que ela podia oferecer. Até que em 1902, assume a prefeitura do Rio, o
prefeito Pereira Passos, cujo revisionismo histórico ainda há de condená-lo
pelas suas políticas de exclusão. Pereira Passos promoveu a mais excludente
reforma urbana já promovida no Brasil, ordenando a demolição dos cortiços
existentes no centro do Rio de Janeiro, num procedimento sumário de
expropriações e de despejos a que se chamou de “Bota-Abaixo”, no qual os
afro-brasileiros foram, literalmente, expulsos de sua habitações, sem o direito
a indenização ou a qualquer acesso à
moradia digna. Assim, expulsos da cidade e sem o direito de acesso à moradia,
etc, os afro-brasileiros se viram obrigados a iniciar a ocupação dos morros
cariocas, dando origem à triste e vergonhosa favelização do Rio de Janeiro. A
primeira favela do Rio de Janeiro foi o Morro da Providência, onde se fixaram
os ex-escravos despejados no Bota-Abaixo de Pereira Passos e os ex-combatentes
da Guerra de Canudos, que, em sua maioria também eram ex-escravos. E em certa medida tal fenômeno de exclusão,
motivando pelo racismo, se repetiu pela maioria dos grandes centros urbanos
brasileiros.
Mas o que são as favelas? As favelas vão muito além da
pobreza. A favela é a projeção da escravidão no Brasil contemporâneo. A favela
é uma espécie de carma social do qual poucos podem se livrar, pois os
instrumentos necessários para tal, se encontram todos fora dela. A favela, não tem arruamento, ordenamento
urbano, as habitações são, muitas das vezes, de tapumes. Na favela não há
direito a vida, à liberdade, à educação, à saúde, etc, etc. Todos os serviços
públicos, como abastecimento d’água tratada, recolhimento de esgoto sanitário,
fornecimento de energia elétrica, etc, são super precários na favela e
geralmente se dão por meio de gatos, etc. A favela não tem voz no Brasil, a não
ser no resultado do Carnaval do Rio de Janeiro, daí sempre a genialidade de
Darcy Ribeiro e Brizola, que deram voz aos excluídos, pelo menos uma vez ao ano.
Hoje, a onda de fascismo declarado que atinge o país, nos permite a compreensão
de que as favelas são guetos de invisível e massiva exclusão social, como foi o
de Varsóvia, no holocausto nazista.
O Brasil tem em torno de apenas 20% de sua população
enquadrada como de classe média, menos de 1% de ricos e mais de 75% de pobres e,
principalmente, excluídos em favelas, alagados, palafitas, trapiches, em suma,
guetos brasileiros de exclusão social em geral. É a classe média brasileira quem desfruta o
Brasil. É ela quem detém o monopólio da educação, do acesso aos cargos
públicos, aos melhores serviços de saúde, ao consumo, etc. A classe média tem
acesso a todos os bens e serviços do Brasil. É ela também quem instrui a
opinião pública nacional. É a classe média que vai às ruas e derruba governos.
A geografia da classe média é sempre muito bem definida, a classe média brasileira
passa a vida inteira sem jamais colocar os pés numa favela.
Então, tem-se de um lado a menor classe média, dentre as 10
maiores economias do mundo, e do outro uma imensa maioria de trabalhadores da
6ª maior população mundial excluídos nas favelas. É isso sim, porque na favela
todo mundo trabalha e dá um duro danado. Se algum dia, o morro não descer para
trabalhar no Rio de Janeiro, por exemplo, a cidade pára. Só não trabalha na
favela quem é atingido pelo desemprego. E mesmo assim, quem está desempregado
se vira, 50% dos postos de trabalho na favela são de empregos formais e 50% são
de trabalhadores autônomos informais. É óbvio que a exclusão social massiva de
tantos trabalhadores no Brasil deixa seu efeito no mercado de trabalho brasileiro.
Ao excluir grande parte de sua população
do acesso aos bens e aos serviços do Brasil, notadamente, do acesso à educação
de qualidade, cria-se um imenso contingente de trabalhadores que não têm outra
opção laboral, senão a de se dedicarem à uma série de trabalhos manuais, muitos
deles pesadíssimos, que pelo excesso de oferta de mão-de-obra, se tornam muito
mal remunerados no Brasil. Não por
coincidência, muitos desses trabalhos são os mesmos que eram executados pelos
escravos dos séculos passados. Os “liberais” republicanos encontraram uma forma
muito eficiente de, na prática, manter a escravidão no Brasil.
É muito difícil, o trabalhador que vive na favela conseguir
mais do que um salário mínimo mensal. Ocorre que o salário mínimo brasileiro,
hoje na ordem de mil e poucos reais, é o suficiente apenas para cobrir as
despesas mensais com moradia, alimentação e vestuário. Ora, se o escravo era aquele submetido ao
trabalho forçado, cujos únicos direitos eram os de moradia, vestuário e
alimentação e se após a vigência da Lei Áurea, ele foi expulso para as favelas,
passando a trabalhar em contrapartida de um salário que só lhe rende,
exatamente, o suficiente para o custeio da moradia, da alimentação e do
vestuário, onde foi que ouve Abolição da
Escravatura no Brasil? É o que coloca por terra a teoria do racismo reverso.
Não existe racismo reverso no Brasil, ou seja, racismo contra o branco, porque
o branco jamais teve sua força de trabalho explorada no Brasil. Ora, se a
finalidade do racismo é a exploração do trabalho, quem nunca teve o trabalho explorado
não pode sofrer racismo, não o “de cor”.
Esta imensa exclusão social brasileira causa ainda outra deformidade,
desta vez no campo político, que é a falsa sensação de enriquecimento da classe
média brasileira. Classe média é classe média, não é rica nem pobre. No
entanto, no Brasil a classe média se considera rica, por isso é conservadora no
campo político. E isso só ocorre porque ela se avalia, economicamente, em
comparação com a miséria e a exclusão das favelas. Vale dizer, diante da
miséria da favela, a classe média parece rica sim. Quem explora a força de trabalho das classes
C, D e E no Brasil é a própria classe média brasileira. E ao fazê-lo,
classe média tem a miragem do enriquecimento, porque vê disponíveis diante de
si a preço vil séries de prestadores de serviços e de trabalhadores, que em
outra circunstância, ela não teria condições de contratar. E se tem no Brasil um trabalho que pode ser
muito representativo neste sentido é o de empregado doméstico. Nos países
desenvolvidos quem tem condições de pagar por um empregado doméstico é só gente,
verdadeiramente, rica. Os EUA, por exemplo, são uma sociedade, declaradamente,
racista, mas muito menos exploratória em relação ao trabalho do afro-estadunidense.
Nos EUA, todo trabalho rende um salário digno, capaz de cobrir muito além da
moradia, vestuário e alimentação. No Brasil, não, o salário mínimo, que é o que
recebem mais 70% dos trabalhadores, é tão baixo que qualquer um da classe média
consegue contratar um empregado doméstico. Trata-se de uma herança direta do
servilismo da Escravatura Brasileira, quando se considerava rico o senhor que
possuía um escravo para cada tipo de atividade manual do cotidiano. A figura do
empregado doméstico excluído na favela é uma verdadeira obsessão para
classe média brasileira, pois sem ela não é rica nem pobre. Não é verdade que o
racista não gosta do preto. Ele gosta sim, mas é no trabalho pesado, recebendo
salário indigno. E nada contra o
empregado doméstico, pois se trata de um trabalho pesadíssimo e geral. Onde há
casa há trabalho doméstico. O trabalho doméstico é o primeiro trabalho do qual
ninguém poderia se furtar. A não ser a
classe média brasileira, que é incapaz de preparar suas próprias refeições, de lavar
sua própria latrina e de manter a casa limpa, em ordem, etc. Nos EUA, o salário
de um empregado doméstico é acima de dois mil dólares, mais de dez vezes o valor
do salário mínimo brasileiro. E é neste
ponto específico que reside uma das maiores incongruências da classe média
brasileira. Como já mencionado, a
exclusão social brasileira estrangula o crescimento econômico do Brasil, porque
produz uma classe média muito diminuta e é ela quem tem acesso ao consumo. Uma
classe média diminuta gera um consumo diminuto que reflete num PIB diminuto se
confrontado com o imenso potencial econômico do país. O Brasil somente desenvolverá todo o imenso
potencial econômico que possui se empreender uma inversão na pirâmide social do
país, ou seja, quando os mais de 70% de sua população deixarem a situação de
exclusão social em que se encontram e ingressarem na condição de classe média.
Este seria o Brasil do futuro que todos querem, mas que, em função do racismo
velado, não nunca é alcançado. E tal estrangulamento acaba atingindo também a
própria classe média, principalmente, nos momentos de crises econômicas e de
desemprego, como o de agora, o que a obriga a migrar, sobretudo, para os EUA, a
fim de ocupar os mesmos postos de trabalho que explora no Brasil: lava prato,
banheiro, latrina, faz faxina, lava, passa, cozinha, construção civil,
comércio, etc. E as conseqüências não são apenas sócio-econômicas. Muito pior,
a exploração do trabalho no Brasil também produz um elevado custo humanitário
ao país: 60 mil homicídios anuais.
Dentre as maiores democracias do mundo, o Brasil é a única
que possui um modelo de segurança pública baseado em duas polícias, uma civil e
a outra, militar. Segundo a Constituição, incumbe à Polícia Civil a função de
polícia judiciária investigativa e à Polícia Militar, o policiamento ostensivo
e a preservação da ordem pública. A Polícia Militar é uma das poucas polícias
do mundo que não investiga. Ao
contrário, o único instrumento que a Polícia Militar conta dentro do modelo de
segurança pública é o emprego da letalidade. Mas, então, se o Brasil já possui
uma polícia que é judiciária, por que existe a necessidade de uma segunda
polícia que não investiga e que se caracteriza pelo emprego da letalidade? A
resposta é para conter e subjugar as favelas. Ora, se o Brasil é um país continental, que
exclui grande parte de sua população em guetos de miséria, apesar de repleto de
tantos e tão abundantes recursos naturais, o que se poderia esperar é a certeza
da insurreição de seu povo. Mas, por que a gigantesca massa de excluídos não se
rebela contra a exclusão? A pergunta é por
que o brasileiro não faz a Revolução Francesa? Porque existe todo um aparato militar,
circulante nas ruas, cuja função, na prática, é
a de conter qualquer sinal de insatisfação popular nas favelas. E como
não poderia ser diferente em se tratando de uma polícia militarizada, a
contenção dos morros é feita mediante o emprego da letalidade. A Polícia
Militar é aquela que efetua a prisão em flagrante delito e elabora o Boletim de
Ocorrência que dará início ao inquérito policial. Contudo, quanto mais
favelizada é uma localidade, maior será a atuação da Polícia Militar como força
letal destinada a conter os morros e as favelas. Em outras palavras, ao menor sinal de
“desordem” nos morro a PM chega atirando e matando. Democracia é só para as
classes A e B. As C, D e E vivem sob regime militar. Aliás, a Polícia Militar é
um dos poucos serviços do Estado que adentram as favelas. O resultado é uma
carnificina, 60 mil homicídios anuais, dentre os quais, de cada 10 mortos, 07
são de afro-brasileiros, excluídos nas favelas. É, sem dúvida, a pior face do
racismo brasileiro. Nos EUA, depois de 3 anos e 60 mil mortos na Guerra do
Vietnã, a opinião pública estadunidense se comoveu e se indignou tão
profundamente com aquele número de perdas em vidas humanas, que fez com que
aquele país se retirasse do conflito no sudeste asiático, de maneira até muito
vexaminosa. Aqui, no Brasil, mata-se por ano o que se matou numa guerra inteira
e não há a menor comoção. A opinião pública, ou seja, a classe média brasileira
não se comove. É intrínseco ao sistema. Para se manter contida nas favelas a
grande massa de excluídos de quem se explora a força de trabalho são,
violentamente, mortas dezenas de milhares de pessoas por ano no Brasil. Mas, a
PM não é apenas a polícia que mais mata no mundo, ela também é a que mais
morre. Ao conceber uma polícia que, em
vez de se dedicar à investigação criminal, detém o emprego da letalidade, a
sociedade coloca os policiais militares, literalmente, em linha de conflito
armado, o que também lhes causa muitas baixas. E o assassinato rotineiro de
policiais, no exercício de suas funções, é, talvez a mais grave comprovação de
que falimos enquanto sociedade. Ademais, o atual modelo de segurança pública
brasileiro, baseado em duas polícias, é extremamente ineficiente. Dos 60 mil
homicídios anuais, ele consegue elucidar apenas 10%.
O Brasil é um país muito grande, diverso e complexo. Nem
todas as pessoas que vivem nas favelas são pretas. Mas isso se deve muito mais
à miscigenação da sociedade brasileira. Assim como nem todo preto se encontra
excluído nas favelas, existem pretos de classe média, mas eles são a minoria.
Não há dúvida que a origem das favelas no Brasil está associada à interrupção
do processo de abolição da Escravatura, levado à cabo pela proclamação da
República. Aliás, pode-se dizer que as favelas são uma projeção da escravidão
no Brasil contemporâneo. E em se tratando de Brasil, o racismo de cor que a
física diz que não é cor ainda tem o seu caráter hipócrita, porque todo aquele
que é, verdadeiramente, brasileiro carrega sua ascendência na África, etc. Aqui
em Minas Geras, por exemplo, todos temos uma bisavó que é preta, outra é índia,
outra é filha de índio com preto e assim por diante. E essa mestiçagem genética afeta muito a
classe média que, não escapa à África e tem muito sangue índio nas veias, mesmo
sem saber. No carnaval, a maior festa nacional, a hipocrisia racial é muito
visível. Durante os quatro dias de folia, a classe média se organiza em blocos
de ruas no Leblon, tocando tambores vindos da África, dançando o samba que é
resultado da assimilação de ritmos africanos e, fantasiada de índio, celebra o
deleite de desfrutar dos bens e dos serviços do Brasil, mas assim que chega a
quarta-feira de cinzas, renega toda aquela brasilidade e passa a não ver com
bons olhos o preto na universidade, no avião, no hotel, no restaurante, etc. É
muita hipocrisia, pois não podemos negar aquilo que nos é fundamental.
A essa altura do texto, podemos enfim concluir várias coisas
sobre o racista brasileiro. A primeira é que todo racista é um preguiçoso, pois
não tem coragem de lavar a própria latrina. Segunda, que o racista é um falso
rico, pois não paga um salário digno pelo trabalho que explora. O racista
brasileiro ainda é incoerente porque migra para os EUA a fim de ocupar os
mesmos postos de trabalho que explora no Brasil. O racismo brasileiro é gênero
de terraplanismo já que se fundamenta em doutrina, não sustentada pela ciência.
O racista é, brutalmente, violento e hediondo, porque só assim consegue manter
o status quo. O racista também é hipócrita e desnaturado, porque renega a
tataravó preta do Congo que todo brasileiro, de uma forma ou de outra, teve em
Ouro Preto.
O Brasil é produto histórico de Portugal. E Portugal é um
país extremamente românico, no sentido de ser fiel depositário do legado
civilizatório-cultural do Império Romano. A assimilação cultural dos povos
sempre foi uma bem sucedida estratégia de desenvolvimento civilizatório de
Roma. Lembrando que Roma não era apenas a Europa. Roma compreendia o sul da
Europa, o norte da África e parte do Oriente Médio. O Brasil também é resultado
da assimilação de diferentes culturas, basicamente, do índio, do branco e do
preto. Depois vieram árabes, japoneses, hoje chegam muitos chineses, etc, etc.
Daí não haver exagero em classificar o Brasil como a Roma Utramarinha, até mais
completa do que a original, já que assimilou o componente indígena, ainda
desconhecido na antiguidade e fundamental para o Brasil. Além de pretos e
brancos, somos também muito indígenas, apesar de também não existir essa
consciência. Para se ter uma ideia, com exceção do arroz e da farinha de trigo
que foram trazidos pelos portugueses, toda a alimentação do brasileiro é de
origem indígena, o feijão, a mandioca, o milho, as batatas, abóboras, etc. O
Brasil é o país onde o mundo inteiro se encontrou e se assimilou. O Brasil é
resultado de um muito precoce processo de globalização, do qual Portugal foi
pioneiro. E tudo isso é muito bom, pois
não há de faltar nada para aquele país que assimila em si o mundo inteiro.
Então, podemos escolher se viremos ao mundo para sermos
aqueles que tratarão o próximo com igualdade e justiça ou seremos seus
opressores, explorando-lhe a força de trabalho. Seguiremos a manter a sociedade
brasileira nos moldes de uma estrutura de trabalho atrasada do séc. XVIII, que
tantos prejuízos causa ao país, inclusive um genocídio velado, ou vamos
modernizá-la para que o Brasil possa aproveitar todo o seu imenso potencial
socioeconômico, para se tornar a maior nação do mundo? Faremos valer o que
subscrevemos na Constituição no sentido de que “todos são iguais perante a lei”
ou seguiremos hipócritas, incoerentes e preguiçosos?
Feito o conhecimento de causa, tudo passa a ser uma questão
de juízo de valor. A escolha é sua.